O Brasil nos tempos do cinza

Um dos maiores músicos brasileiros do século vinte foi um paraibano de Itabaiana chamado Severino Dias de Oliveira. Conhecido no Brasil e mundo afora como Sivuca, além de uma obra instrumental grandiosa fez também parcerias com grandes letristas que resultaram em clássicos da MPB. 

Uma das mais belas composições de Sivuca, em parceria com o carioca Paulinho Tapajós, chama-se “No tempo dos quintais”. Numa melodia que é pura ternura os versos de denúncia, de tão delicados, quase parecem feitos apenas de lirismo.

Mas não nos enganemos. Por trás daquele lirismo transbordante está a denúncia de um tempo duro, um tempo de medo e de terror. Sivuca e Paulinho celebram um tempo de paz e bonança que já se fora, e denunciam o arbítrio de um tempo de medo, quando “um marquês se fez dono da vida”.

A semana que passamos foi pródiga em acontecimentos que remetem a essa canção. O garoto propaganda de si mesmo que brinca de ser prefeito de São Paulo encarnou o marquês da letra e “mandou buscar cem dúzias de avenidas, pra expulsar de ver as margaridas”. É impossível ver aquele enorme painel cinza sem lembrarmos das imagens da Alemanha e da Itália entre os anos de 1920 a meados de 1940. Dória parece querer afirmar que o mundo do autoritarismo é um mundo sem cor, um mundo monocraticamente cinza. Sua próxima medida, quem sabe, seja expulsar os jardins da cidade, e confirmar a música, expulsando de vez as margaridas. Por que Dória age assim? Talvez Sivuca e Paulinho tenham sido premonitórios, talvez Dória o faça “por mania de mandar”.

Vimos ainda, durante a semana, a especulação crescente em torno da nomeação do novo ministro do Supremo, cada vez mais um ínfimo tribunal de justiça. O nome de Ives Gandra Martins Filho ficou célebre ainda que não tenha sido nomeado. Tristemente célebre, pois o que ganhou destaque foram as suas posições extremamente conservadoras, machistas e homofóbicas. O candidato ao Tribunal da Inquisição (perdão, ao Supremo Tribunal Federal) considera o homossexualismo uma bestialidade, defende que as mulheres devem obedecer aos homens e atua como carrasco dos direitos trabalhistas. É um celibatário integrante da Opus Dei, a ultramegaconservadora organização católica. Parece um forte candidato ao posto do marquês da música que falamos, outro que gostaria de expulsar de vez as margaridas da nossa vida.

Para completar uma semana de tantas agruras tivemos o AVC de dona Marisa. E em contraponto à solidariedade que veio de aliados, admiradores e até mesmo de adversários políticos de Lula, que entendem que nessas horas um pingo de civilidade é necessário, e que não podemos nos desumanizar de todo, veio também uma onda de ódio, brutal e bestial. Ódio cuja forma mais emblemática, talvez, tenha sido a das mulheres que foram para a frente do hospital onde dona Marisa está internada, ou a do jornalista que divulgou a tomografia. É difícil dizer quem se saiu melhor no campeonato do ódio.

O certo é que, voltando a Sivuca e Paulinho Tapajós, que tanta falta nos fazem, os tempos são duros. Chafurdando no lamaçal do ódio e da ignorância, da estupidez e da desumanidade, os jardineiros do medo cultivam a flor cinza do fascismo. E preparam-se, com afinco, para substituir as multicolores flores da democracia pela flor de cor única do autoritarismo.

Ainda bem que nos resta a luta, o velho e bom caminho de sempre. Ainda bem que nos resta a esperança. É que sabemos nós, os velhos e os novos lutadores, que a canção está correta, “que enquanto houver os corações/ Nem mesmo mil ladrões podem roubar canções/ E deixa estar que há de voltar/ O tempo dos pardais, do verde nos quintais/ Tempo em que o medo se chamou jamais”.

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