“Belos Sonhos”, verdades construídas

Drama do diretor italiano Marco Bellocchio trata a infância como o estágio em que os pais para não traumatizar os filhos usam argumentos falaciosos.

Pode ser o costume ou saída fortuita quando num repente brota a frase para amenizar ou mesmo driblar o choque da frágil criança diante da brutalidade da notícia. Esta mescla de tradição e proteção irá acompanhá-la por toda existência, não raro como inescapável trauma. Com essa abordagem, centrada na autobiografia do jornalista Massimo Gramellini (Valerio Mastandrea), vice-diretor do jornal italiano La Stampa, o cineasta italiano Marco Bellocchio (1939) constrói este “Belos Sonhos”.

Acostumado a dramas intimistas, eivados de críticas às conflituosas relações entre pais e filhos (“De Punhos Cerrados”, 1965), Bellocchio usa o relacionamento do garoto Massimo (Nicoló Cabras) com a Mãe (Barbara Ronchi), para expor o quanto eles eram unidos no cotidiano. Indo da heroína feiticeira Belfogor, da série de sucesso nos anos 50/60, sob cuja máscara ele projetava suas fantasias, o dançar o twíst “All Night Long”, na voz de Danny & The Juniors, e às brincadeiras ao redor dos sofás da sala.

Nesse estreito espaço, em câmera baixa, Bellocchio e seu diretor de fotografia, Daniele Cipri, torna-os mais próximos, ficando o Pai (Guido Caprino) como intruso, dado a seus modos bruscos, frios, autoritários. Essas contraposições atestam, na primeira parte do filme, as relações conjugais da época, anos 50/60, em que a autoridade paterna era imperativa, ainda mais num país católico, onde o Vaticano predominava.

Cena da queda cria dúvidas

O universo infantil edificado pela mãe esboroa diante da súbita perda. O Pai a anuncia num misto de surpresa e de algo inevitável, sentido apenas por Massimo. Porém, a instantânea cena do vulto a cair no vazio, antevisto através da janela, fica em sua mente e, inclusive, na do espectador. São cúmplices como num filme de Hitchcock (Alfred, 1899/1980), por presenciar o que a testemunha aparentemente não se deu conta. E Bellocchio irá repeti-la ao longo da narrativa.

Têm-se, assim, a versão do Pai sobre a angústia que induziu a Mãe ao ato e levou Massimo à prostração. Sua vida, a partir daí, será torcer pelo Torino, gritar os nomes de seus ídolos e conviver com o vazio deixado por ela. Bellocchio mergulha-o na seca relação do universo masculino, sem aconchego ou troca de impressões, mesmo quando o Pai lhe diz que irá se casar de novo e, estando a noiva perto, não ser apresentado a ela.

O Massimo a sair desses universos em contínuo é dado a silêncios, a pânico e a internalização do trauma. Em vez de longas sequências ao estilo intimista dos anos 50/60, com solitárias caminhadas pelas ruas, sentado em parques ou à mesa de bares, Bellocchio coloca-o em meio à massa nas partidas do Torino, onde se descobre repórter esportivo, e, depois, na terceira parte do filme, em meio aos combates na Guerra da Bósnia (1992/1995), já como repórter de combates, vê a morte ao seu lado.

Bellocchio é atento à manipulação da imagem

Esses fios narrativos a ressaltar a trajetória de Gramellini são os esteios das variações dramáticas com as quais Bellocchio envolve o espectador. Existe a realidade do Massimo repórter em plena cobertura do conflito que opôs Bósnia, Croácia, Servia e Montenegro e deixou 97.207 mil vítimas, mas também o olhar aguçado de Bellocchio, enquanto cineasta, para a forma como a imagem dos combates é captada e depois veiculada na mídia internacional. Se advinda do real ou da manipulada montagem.

Isso se dá na sequência em que Massimo flagra a morte da mulher em meio aos combates e no cômodo ao lado o garoto joga videogame. Rápido, seu repórter fotográfico tira-o do jogo para compor a cena com a vítima. Têm-se, desse modo, “a brutalidade da guerra contra a mãe e seu filho, a criança e a mulher, a chocar espectadores mundo afora”. Contudo, trata-se de composição, em que se ajeita o cenário e dispõe-se nele os atores. Bellocchio desmonta o falso e o denuncia, numa opção pela ética na mídia.

Dessa forma, Bellocchio não deixa de desconstruir mitos, como em “Bom Dia, Noite (1978)”, sobre o sequestro de do ex-primeiro-ministro Aldo Moro (1916/1978) pelos guerrilheiros das Brigadas Vermelhas, ou em “Vincere, 2008”, em que aborda o surgimento do fascismo na Itália (1922/1943). Neste “Belos Sonhos” Massimo questiona o Padre, seu professor no colégio católico, e este responde com humor a seus questionamentos sobre a poder de Deus. E em vez de chamá-lo de ateu, simplesmente lhe diz: ”Continue a perguntar até obter resposta”.

Outra coisa não fez ao enfrentar o que o atormentava desde criança: O que fez a Mãe para supostamente justificar a verdade construída pelo Pai? A forma como elucida a indagação leva-o ao atordoamento e à negação da doce imagem dela construída, principalmente ao pensar que ela faria tudo para continuar a protegê-lo. Em suma, a falsificação da verdade torna-se uma forma de incapacitar o ser para a vida plena, embora Bellocchio apresente atenuantes.

Belos Sonhos. (Fai bei sogni). Drama. Itália/França. 2016. 130 minutos. Trilha Sonora: Carlo Crivelli. Montador: Francesca Calvelli. Fotografia: Daniele Ciprì, Roteiro: Edoardo Albinati, Marco Bellocchio, Massimo Gramellini, Valia Santella. Direção: Marco Bellocchio. Elenco: Valerio Mastandrea, Barbara Ronchi, Bérénice Bejo, Drazen Pavlovic, Emmanuelle Devos, Guido Caprino.

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