Força aparente, equívoco óbvio 

Diante de mais uma onda recorrente de rebeliões sangrentas em presídios, a mídia tudo noticia com a falsa roupagem de novidade e o governo, entre a perplexidade e a desorientação, ensaia enganosas medidas de força.

Na incapacidade de controlar a explosiva situação interna que envolve todo o sistema prisional, põe-se agora o Exército para cumprir um papel que não lhe cabe.

Às Forças Armadas a Constituição reserva a função estratégica de preservar a integridade do território e defender a soberania do país. Jamais exercer o papel de polícia. Menos ainda nas cadeias públicas em substituição às polícias estaduais.

Ora, a crise crônica do sistema prisional é uma das faces mais dolorosas da violência criminal que se estende por boa parte do nosso território, fruto de um conjunto de fatores de natureza social, econômica, cultural e política.

Tem uma relação direta com a conjuntura econômica e social e sofre a influência de outras variáveis — grau de escolaridade, densidade populacional, densidade de habitantes por domicílio, morfologia urbana (particularmente nas áreas de grande concentração popular), consumo de álcool e outras drogas, ausência de alternativas de lazer aos finais de semana nas regiões periféricas das grandes cidades, etc.

Também concorrem fortemente para expansão das atividades criminosas a impunidade (decorrente da fragilidade das polícias e da lerdeza e da parcialidade da Justiça na prática processual); e a retroalimentação da violência através da mídia.

O papel nefasto da grande mídia monopolizada, em particular a televisão, há de ser levado na devida conta.

Programas chamados "policiais" expõem diariamente o crime de maneira glamourizada e fazem a apologia da violência bruta para combatê-lo.

Ainda no primeiro governo Lula, representando a Frente Nacional de Prefeitos, participei do Comitê Federativo que formulou as bases da nova Política Nacional de Segurança, sob a coordenação da Subsecretaria de Assuntos Federativos da Presidência da República e da Secretaria Nacional de Segurança, órgão do Ministério da Justiça.

Ali, a exemplo do que ocorria em alguns países da América do Sul, se introduziu o conceito de “segurança cidadã”, no sentido do dever do Estado em promover ambiente seguro e de paz à população, em substituição ao conceito de “segurança nacional”, herdado do regime militar, que “protegia” o Estado da insatisfação dos cidadãos.

A política de segurança, orientada pela preservação e disseminação dos Direitos Humanos, combinaria a repressão com a prevenção, com ênfase na prevenção; e daria mais peso à inteligência do que à força bruta na ação repressiva.

A União Federal compartilharia verticalmente com estados e municípios as ações de prevenção, assim como dos demais entes federativos teria a cooperação nas atividades repressivas.

Horizontalmente, far-se-ia a participação da sociedade, em todos os níveis.

As políticas e programas formulados daí em diante se assentaram nessa base conceitual.

E, de fato, sob a influência positiva da extraordinária inclusão de mais de quarenta milhões de brasileiros no sistema produtivo e no mercado de consumo – nos dois governos Lula e no primeiro governo Dilma -, conquistaram-se progressos importantes no sentido da redução relativa da criminalidade.

Mas a porca entortou o rabo, sempre, desde então, no contingenciamento seguido de recursos destinados a essa área. Investimentos importantes deixaram de ser feitos.

Agora, com o agravamento da crise social e a superlotação sem precedentes dos presídios, é possível compreender com mais nitidez os fatores multicausais da violência criminal – e, por extensão, da crise crônica do sistema prisional.

Mas o que prevalece é um "faz de conta" governamental, apoiado na mídia, e ao invés de se ir às causas de problemas tão graves, encena-se a pantomima da força bruta para sufocar as rebeliões, arriscando chamuscar o Exército brasileiro, constitucionalmente destinado a missões patrióticas muitos mais nobres.

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