“Neruda”, tempos sombrios

Em tom de fábula, cineasta chileno Pablo Larrain compõe perseguição ao poeta Pablo Neruda como antevisão de sua morte na ditadura Pinochet.

De antemão, o personagem brota da realidade neste “Neruda” mais como político do que poeta, no Chile de 1948, quando o presidente-ditador Gabriel Gonzalez Videla (1898/1980) põe na clandestinidade o Partido Comunista Chileno (PCCh). Mas é também o poeta em torno do qual o cineasta Pablo Larrain (1976) monta esta farsa em tom de fábula, instigada por seu perseguidor Óscar Peluchonneau (Gael Garcia Bernal), da Polícia Nacional de Estado, ao reforçar seu mito para granjear fama.

Embora este seja o centro da narrativa, construída por Larrain (O Clube, 2015) e seu roteirista Guilhermo Calderon, o que se vê é o homem Pablo Neruda (Luis Gnecco), pseudônimo de Ricardo Eliécer Neftali Reyes Basoalto (1904/1973), nesta biografia ficcionalizada. De senador pelo PCCh, em oposição ao governo Videla (1948/1952), e de poeta em plena escritura de “Canto Geral”(1950), sua obra-prima. Emerge daí o artista entregue aos bordéis, à dança de salão e ao recitar de suas poesias.

O Neruda destes ambientes, em cinzentos tons da fotografia de Sergio Armstrong, criando opressivo clima, transita de seu discurso “Eu Acuso”, contra Videla por nada fazer para melhorar a situação dos trabalhadores das minas, ao refúgio em Valparaíso com a companheira Delia (Mercedes Moran), para fugir ao cerco. Larrain dota estas sequências de ritmo, ação e diálogos farsescos, reforçando a tendência de Neruda de escapar da segurança montada pelo PCCh para evitar sua prisão.

Neruda e Óscar são vítima e algoz

Há, porém, o frequente choque anunciado entre ele e Peluchonneau, configurando a dualidade vítima/algoz, em função de seus papéis no regime ditatorial. Em Neruda, por sua defesa das camadas populares, enquanto político e poeta, no policial porque seu dilema advém do conflito entre ferir o mito ou sacrificá-lo, porquanto a ele não se equipara. Sua tarefa é desconstruí-lo perante o povo chileno, a fim de não mais ser visto como herói, mas tão só um inimigo a executar, e, assim, triunfar.

Sua situação claudica quando a rede de proteção se amplia em torno de Neruda e as chances para rompê-la logo se mostram frágeis. Caso de Maria (Antônia Zegers), primeira companheira do poeta, que se dispõe a prestar depoimento, mas se desdobra em elogios a ele, frustrando seus planos. Mas também da segunda, Delia Del Carril (Mercedes Morán), da qual nada consegue. Chega ao ponto de cair no ridículo, devido às suas tramas sustentadas apenas por compulsiva ânsia de flagrá-lo em descuido.

Recompensa é a lápide gelada

A dupla Larrain/Calderon não se limita à fábula e ao farsesco, completa-o com realismo mágico na sequência da fuga de Neruda em plena Cordilheira dos Andes, após deixar Valparaíso. Ele, a quem não faltava o trato com armas, motiva os lamentos de Peluchonneau, nos fluxos de sua memória de morto sob camadas de neve. Essa a recompensa do policial da ordem e da preservação do status quo. Resta-lhe tão só a lapide gelada.

A exemplo de “O Clube (2015)”, no qual trata de casos reais de pedofilia numa igreja católica à beira-mar, Larrain se prende ao específico em Neruda. Naquilo que revela mais dele que seus poemas. Como na longa sequência da discussão em sua casa, quando Delia insiste para ele escapar pelos Andes, mas quer ir junto. Em forte reação, ele confirma sua intenção de partir sozinho, mesmo ao custo de se separar dela.

Noutra subtrama, ele escapa à vigilância de Álvaro Jara (Michael Silva), militante do PCCh, encarregado de sua segurança. Por vezes, ele o dribla, numa delas quase cai nas garras do atordoado Peluchonneau. A este parecia um jogo entre dois homens de formação e intentos opostos numa disputa por objetivos a envolver a sobrevivência deles e da própria ditadura Videla (1946/1952).

Ditadores não têm senso cultural

Tema intricado, a exigir de Larrain e seu editor Hervé Schneid fluidez da narrativa, da trama e das subtramas através do encadear dos planos para mudar o enquadramento a cada ação. A exemplo das sequências do bordel em Valparaíso e de Peluchonneau fugindo de Neruda. Assim, o espectador vê a ação do ponto de vista de Neruda, mas também do policial estirado em agonia na neve, em perfeita harmonia entre ação e conteúdo.

Com este diversificado tratamento estético e narrativo, Larrain evitou o fiasco de seu compatriota Manoel Basoalto, no filme “Neruda Fugitivo, 2015”, ao abordar idêntico tema. Com outra composição dramática, em “O Carteiro e o Poeta” (1995), o cineasta britânico Michael Radford (1946) obteve êxito ao centrar sua abordagem na amizade de Neruda (Philippe Noiret) com o carteiro (Massimo Troisi), em seu exilio na costa italiana, durante a ditadura Videla, até seu retorno ao Chile, em 1952.

Mesmo tendo seu mito reforçado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1971, durante o Governo Salvador Allende (1970/1973), morreu em 23/09/1973 sob o impacto e perseguição do ditador Augusto Pinochet (1973/1990). Golpistas, sem dúvida, não têm sensibilidade cultural.


Neruda” (Neruda). Drama. 2016. Chile, Argentina, Espanha, EUA, França. 107 minutos. Música: Federico Jusid. Edição: Hervé Schneid. Fotografia: Sergio Arms Mong. Roteiro: Guilermo Calderon. Direção: Pablo Larrain. Elenco: Gael Garcia Bernal, Luis Gnecco, Mercedes Morán, Antonia Zegers, Michael Silva.

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