“Elle” – Marcas da insanidade

Ao transitar pela insanidade, ódio e violência no universo burguês, cineasta holandês Paul Verhoeven trata da ambiguidade entre estupro e aceitação.

Nesta espécie de quem odeia quem e submete o outro a mais vil humilhação e violência, o cineasta holandês Paul Verhoeven (1938) transita pelo universo burguês de uma Paris que nada tem de sonhos. No centro da ação está a empresária do ramo de games Michèle Leblanc (Isabelle Huppert), mergulhada em conflituosas relações de trabalho, familiares e eróticas, sem externar sequer a culpa que a redimiria perante seu meio natural.

Ao dotá-la de tal perfil, Verhoeven faz o espectador mergulhar, a partir do livro do escritor francês Philippe Djan, no estreito círculo em que ela revela o quanto todos dela dependem. E se vale disso, a começar pela vaidosa mãe Irene Leblanc (Judith Magre), vítima de suas zombarias pelos efeitos do botox na face e de seu jovem namorado, mas também a forma como tenta controlar o filho Vicent (Jonas Bloquet), devido aos arroubos de independência às suas custas. Estes são, porém, seus dependentes.

Os únicos a escapar à sua ferocidade são o ex-companheiro Richard (Charles Berhing), a nora Josie (Alice Isaac) e a amiga íntima Anna (Anne Consigny). Com eles as respostas são ácidas, à altura de suas provocações. E de outra natureza é o modo como se impõe aos criadores de games em sua empresa. Pende sempre sobre eles a desconfiança de que a ludibriam, quando não a sabotam e lhe mandam mensagens indecorosas, às quais ela responde com ameaças e tramoias dignas das grandes vilãs do cinema.

Michèle mantém controle absoluto

O que se discute nestes entrechos é o quanto este círculo depende de suas orientações e, principalmente, de seu poder financeiro. É deles que ela se vale para exalar desprezo, azedume e superioridade. Mantida pela exuberante performance de Isabelle Huppert (1953), ela paira sobre eles, com rispidez e, por que não, horror. E tem consciência de que decorre daí seus plenos poderes, caso contrário perderia seu controle sobre eles.

Diante de tal complexidade, Verhoeven e seus roteiristas David Birke, Harold Manning e Philippe Djan tratam da costumeira manipulação de herdeiros nas sequências de suas discussões com Vincent. Notadamente por ela ver em Josie mais uma oportunista do que a companheira adequada

para o filho. E ainda mais quando o critica por não achar que o neto afro seja filho legítimo dele, suspeitando ser fruto de inseminação artificial. Verhoeven reforça esta impressão na sequência em que ela o contesta diante do amigo afro, sorridente, ao lado deles no hospital.

Não bastasse o racismo de Michèle, Verhoeven trata com menos sutileza a tendência dela à violência, ao masoquismo, em jogo sexual com o Estranho (Laurent Lafitte) ao invadir sua mansão. As sequências de estupro são de grande impacto, ao qual ela “se submete sem resistência, mas obtendo prazer”. O espectador, em princípio, mergulha na dubiedade. Primeiro por inexistir diálogos, apenas o ato, e, depois, a revelação a seu círculo de que isto se dá, sem que ela culpe explicitamente o “agressor”.

Verhoeven cai na fácil polêmica

A leitura inicial destas sequências é de que Michèle, devido ao controle exercido sobre seu círculo encontra seu instante de submissão e daí decorre o prazer. Mas que também o Estranho, operador financeiro, dado ao constante risco e a frieza com que atua, encontre seu duplo. Poderia ser uma atenuante, menos machista e opressora, neste instante de tentativa de pôr abaixo décadas de inconclusa liberação feminina. Contudo, a dupla Verhoeven/Djan cai no recurso fácil do impacto e da polêmica.

Mas Verhoeven, à moda dos filmes policiais e westerns hollywoodianos dos anos 30 e 40, sob a censura do Código Hayes estadunidense, que proibia o triunfo do vilão, encontra idêntica saída pela execução do Estranho. Punição a desconstruir a tendência de Michèle, através da justiça feita pelas mãos de seu defensor (Christian Berkel) em defesa da vítima. A emenda simplesmente destruiu o soneto, com uma “engenhosa solução”.

Djan em seu livro e, partir dele, Verhoeven e seus roteiristas Birke e Manning se cercam, além disso, das atenuantes de Michèle ter sofrido maus tratos e compartilhado à força os crimes com o pai. A exemplo da ojeriza à mãe, ela também o odeia e se rejubila ao livrar-se deles. São indicações que levam o espectador a montar o quebra cabeça, não para justificar as atitudes e a psicologia da personagem, mas para entender seu comportamento e a obtenção do prazer submetendo-se ao estupro.

Restou a configuração do universo burguês

Acostumado a filmes de ação (RobCop, 1987); Vingador do Futuro, 1992), Verhoeven dota este “Elle”, Ela, em português, da tensão de um thriller, a partir do tema central: o da violência consentida, mas com subtramas bem articuladas: I – manipulação do filho Vincent; II – o controle de seus criadores de games; e os fios de sua relação com a mãe e seu ex-companheiro, que reforçam seu polêmico tema. E mesmo com os senões, não deixa de caracterizar as carcomidas entranhas do universo burguês.

Elle. (Elle). Drama. Alemanha, França, Bélgica. 2016. 130 minutos. Montagem: Job ter Buri. Fotografia: Stephane Fontaine. Roteiro: David Birke, Harold Manning, Philippe Djan. Direção: Paul Verhoeven. Elenco: Isabelle Huppert, Laurent Lafitte, Jonas Bloquet, Anne Consigny, Alice Isaac.

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