“Canção da Volta”, conflitos submersos

Com apurada linguagem e ousada estética, cineasta paulistano Gustavo Rosa de Moura trata dos limites da atribulada relação de casal classe média.

Nas primeiras sequências deste “Canção da Volta”, o apresentador de programa cultural de TV, Eduardo (João Miguel) sai à procura da companheira Júlia (Marina Person) nos emaranhados labirintos da megalópole. Este poderia ser o leitmotiv deste drama psicológico que levaria às razões de seu desaparecimento. No entanto, o diretor Gustavo Rosa de Moura e seu corroteirista Leonardo Lewis preferem trocar sua elucidação pelos intrincados entrechos que o deixam em suspenso.

Esta opção estimula o espectador a buscar as razões do desaparecimento de Júlia. De família alta classe média paulistana, com vida a fluir sem os atropelos das pessoas comuns. Seus filhos, Lucas (Francisco Miguez), já rapaz, e a garotinha Maria (Stella Hodge), frequentam boas escolas e eles, aparentemente, vivem em harmonia. Nesta normalidade, portanto, a rotina acaba interferindo ao criar focos de instabilidade na relação do casal, pois Eduardo procura entendê-la e não consegue.

Moura deixa o espectador ir apreendo estas nuances, ao introduzir entrechos que não explicitam o sumiço inicial de Júlia. Nem os motivos de ela o repetir ao se fechar no quarto ou no banheiro ou sumir durante a ida à praia com a família. Muito menos se vê o que, de fato, rompeu a normalidade do casal. Ela preenche seu tempo em academias de dança, saídas com a amiga, buscando a filha na escola, cuidando do apartamento. E tampouco é vista expondo seus problemas ou discutindo planos futuros.

Vida de Eduardo foge à mesmice

Diferente de Eduardo, cuja rotina é estruturada a partir da família, do programa de entrevistas, dos furtivos encontros com a assistente Marina. Moura faz, de certa forma, um contraponto entre eles, ao mostrar o universo feminino, de dona de casa, e o masculino que, além de tudo, tem a amante. Difícil não ver nisso o imperativo do machismo, em contraposição às reações de Júlia ao sofrer sem estar consciente disso. E não o entender só traz mais conflitos à sua relação com Eduardo e os filhos Lucas e Maria.

É nestas sequências que Moura muda o ponto de vista dos entrechos, focando-os nas contraditórias atitudes de Eduardo. De compreensivo com a aflição mental de Júlia, se torna agressivo, autoritário, notadamente ao interceder na discussão de Lucas com ela e terminar se descontrolando. A partir daí, torna-se o outro vértice do drama vivido não só pela companheira como pelo filho. Transborda ciúme, prazer em submetê-la a cobranças sobre seus sumiços e, sobretudo, suas supostas “traições”.

Em meio a estas agressões, Moura intercala a capacidade de ambos se entregarem ao afeto, ao reconhecimento do outro como saída para seus impasses. Mesmo quando Lucas, submetido a pressões superiores a suas forças, questiona o pai: “Por que você não se separa dela? E ele responde: É por que a amo”. É o antídoto para os bloqueios, as feridas internas, que os martirizam, configurados em flashbacks da sala ou do quarto vazio, sem móveis, como ela tivesse juntado seus pertences e partido sem avisar.

Entrechos fogem ao maniqueísmo

Todo clima dos entrechos é construído por Moura com cortes secos e sem preparação que situe o espectador sobre o que virá a seguir. As ações vão se sucedendo numa velocidade típica de filme que foge à linearidade e ao maniqueísmo que manipule a emoção do espectador. Mas o estimula a se envolver ao mesclar flash de corredores, escadas, túneis, ruas, prédios de uma São Paulo nublada, quase Londrina, com os choques do casal.

Trata-se, porém, de cinema, da construção de uma história através de imagens que explicitam sentidos, símbolos e construções. Moura se vale da iluminação e dos elaborados enquadramentos de sua diretora de Fotografia, Flora Dias, e dos efeitos sonoros de Gustavo Zysman para reforçar o estado psicológico de Júlia. Há pouca luz, os ambientes são carregados, as ruas escuras, as interpretações muito físicas, exigem dos atores múltiplas expressões, para externar aflição, dor e autoflagelação.

Mesmo nas sequências da praia, quando Eduardo e Lucas se esforçam para esconder de Maria o que se passa com a mãe, a sensação é de que mentem a si mesmo e à garota. Júlia é a mulher que busca escapar ao papel na qual a enquadraram e se esforça para dele se livrar. Embora no desfecho, de novo à beira da praia, Moura dê a impressão de happy-end, fica a ideia de que mostra apenas um interregno. Nada está resolvido.

Ensaio sobre a classe média

No limite, “Canção da Volta” pode ser visto como um ensaio sobre as agruras da classe média brasileira com seus papéis bem delineados, quando na verdade passaram por metamorfoses profundas. Moura e Lewis fizeram bem em não decifrar o que na verdade aflige e atormenta Júlia. Deixou isto a cargo do espectador para si ver na posição dela e de Eduardo. O equilíbrio do filme está justamente nesta posição: a de apenas expor o problema, sem apontar razões e saídas.


Canção da Volta. Brasil. Drama. Thriller psicológico. 2016. 92 minutos. Efeitos sonoros: Gustavo Zysman Nascimento. Montagem: Bernardo Barcellos. Fotografia. Flora Dias. Roteiro: Gustavo Rosa de Moura/ Leonardo Lewis. Direção: Gustavo Rosa de Moura. Elenco: João Miguel, Marina Person, Francisco Miguez, Stella Hodge.

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