Um juiz de terno preto

O peruano Manuel Scorza, nascido em Lima em 1928 e morto em um acidente aéreo em Madri em 1983, foi um dos grandes nomes da literatura latino-americana, e como tantos outros injustamente esquecido. Seu último romance, “A dança imóvel”, traz a narrativa daquela que considero a mais sutil e inteligente forma de vingança de uma mulher contra o homem que lhe traiu.

Mas foi a sua obra sobre as revoltas camponesas dos anos de 1960 no Peru, composta de cinco volumes, que alçou Scorza a um patamar superior na literatura do continente. As baladas ou cantares d’A Guerra Silenciosa foram lançadas no Brasil com os títulos de “Bom dia para os defuntos”, “Garabombo, o invisível”, “O cavaleiro insone”, “Cantar de Agapito Robles” e “A tumba do relâmpago”.

Scorza não foi apenas uma testemunha ou um simples repórter daqueles acontecimentos. Militante do Movimento Comunal Peruano, tendo sido seu secretário, tomou parte ativa no movimento camponês que resultou em mais de um massacre. Tal foi a violência contra os camponeses naquela época que o personagem Agapito Robles, no quarto volume das baladas, diz que em alguns lugares do Peru existem cinco estações ao ano: outono, inverno, primavera, verão e massacre.

A repercussão da denúncia feita por Scorza, principalmente com o primeiro volume, foi tal, que Héctor Chacón, o Olho de Coruja, foi posto em liberdade após onze anos trancado em uma prisão no meio da floresta amazônica peruana. Chacón é o personagem central de “Bom dia para os defuntos” (Redoble por Rancas, no original), primeira das cinco novelas de realismo mágico de Scorza, embora ele preferisse o termo onírico ao invés de mágico.

Em “Bom dia para os defuntos”, o antagonista é o juiz Montenegro. No primeiro capítulo, denso e maravilhoso a ponto de valer pelo livro todo, “um úmido entardecer de setembro soltou um terno preto”. Naquela tarde, Dom Paco, o juiz de primeira instância Dr. Dom Francisco Montenegro, perdeu um sol. Durante um ano inteiro aquela moeda de pouco valor permaneceu no meio da rua, sem que alguém tivesse a coragem de apanhá-la. Scorza nos mantém em explosivo suspense durante todo o capítulo, até que “o terno preto recolheu a moeda e afastou-se. Nessa noite, contente com a sua boa sorte, anunciou ao clube: ‘Senhores, achei um sol na praça!’ A província suspirou”.

Não suspiramos nós, pegos pela narrativa delicada e cortante de Scorza. O juiz de primeira instância que se vestia de negro não é derrotado, por mais que seja essa a nossa torcida. Escapa de mais de um atentado, e sobrevive para impor o seu autoritarismo e dirigir o terror até a década seguinte.

Nas baladas, não obstante o onírico e o maravilhoso, a realidade se impõe, dura, sangrenta, cruel. Os camponeses são massacrados, suas lideranças terminam na cadeia ou no cemitério, e as baladas se encerram sem que o povo tenha obtido a mínima vitória. A obra de Scorza é de leitura obrigatória, pelo valor literário, pela altíssima qualidade da sua prosa que se alça na maior parte das vezes à condição de bela e sedutora poesia, mas também pelo seu valor histórico, pelo relato das lutas populares da América Latina que ele traz.

No Brasil de hoje, a semelhança de intocáveis membros do judiciário com Dom Paco, um juiz de primeira instância que se vestia de negro e que ninguém ousava contestar, de quem os jornais tinham medo, que comprou certa vez dez bilhetes de um sorteio de dez carneiros para sua mulher e ganhou todos os dez, pois ninguém ousaria ganhar dele, não é mera coincidência.

Ainda há juízes de primeira instância que se vestem inteiramente de negro e que não admitem ser questionados ou contestados por ninguém. Ainda os há em Yanahuanca, no altiplano peruano; ainda os há no Brasil, no altiplano de Curitiba. A literatura continua a dizer muito sobre a vida real.

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