“A Negra de…”, visões anticolonialistas

Em filme em que jovem vê seu sonho de viver na França se tornar pesadelo, cineasta senegalês Ousmane Sembène discute o colonialismo.

Na idílica sequência deste “A Negra de…” em que a jovem senegalesa Diouana (Mbissine Thérèse Diop) caminha sobre a mureta diante de sofisticado prédio em bairro nobre de Dacar, capital do Senegal, seu namorado (Momar Nar Seme), temendo que ela se machuque, se apressa em fazê-la descer. Porém, o espectador logo percebe que a intenção do cineasta Ousmane Sembène (1923/2007) é chamar atenção para o risco de eles serem expulsos da área reservada apenas às famílias francesas.

Este risco demarca toda a narrativa, seja na amarga lembrança do colonizador francês no país (1638/1960), seja na própria França, onde Diouana, incentivada pela patroa (Anne-Marie Jelinek) e o companheiro desta (Robert Fontaine), aceita viver no balneário Antibes, na Côte d´Azur. O acordo era para, em vez de doméstica, ser babá dos três filhos pequenos do casal. O que supostamente lhe permitiria levar uma boa vida.

A visão deste paraíso foi construída pelas fotografias de Paris e leituras da revista de moda Elle, com suas criações e modelos deslumbrantes. E ela, mesmo em Dacar, já usava vestido branco com estampas pretas, sapatos altos, colar e enorme brinco em formato de flor, também brancos. Estar em Antibes era o coroamento deste fugaz estilo e modo de vida.

Diouana se torna escrava na França

Ela se encanta no início ao deixar o aeroporto no carro do patrão e ter um quarto só para ela num prédio de alta classe média, mas logo se vê presa ao cotidiano de faz tudo. Não à toa o colonialismo, e hoje o imperialismo, atraiu milhões de jovens (e não só eles), para seu estilo de vida e sua suposta equidade econômico-financeira de “oportunidade para todos” para, depois, torná-los mão-de-obra barata.

Para Diouana, a França se torna o quadrilátero da janela, de onde avista a praia cheia de banhistas e a rica cordilheira de prédios. Não tem folga, não sai à noite, não recebe salário e, além disso, a patroa a atormenta com seguidas tarefas e quando recebe visitas para jantar, lhe faz soporíferos elogios. Enquanto o patrão se mostra compreensível, cita seus direitos, paga-lhe o salário, mas não a libera para “interagir” com o povo francês.

Sembène não se furta em desbastar o modo como o colonialismo francês fez o colonizado africano sofrer sua dupla exploração: 1) Ao se apropriar do território dele, de suas riquezas e de sua mão de obra barata; 2) De valer-se da propaganda de seu estilo de vida para continuar a explorá-lo na própria França. Crias deste sistema, os patrões não dão a Diouana a chance de enviar sequer míseros francos a Dacar para sustentar a mãe e o irmão pequeno.

Diouana responde com a maldição

Os momentos de troca entre eles são raros. Salvo ao presentear os patrões com uma máscara africana. Tanto que sua reação à dupla exploração se dá através do silêncio, da negativa de atender a patroa, no que redunda em tragédia. Neste entreato, Sembène se vale de síntese para ligar a sequência da máscara ao desfecho do filme. É quando o Patrão tenta indenizar a mãe de Diouana, que se recusa a receber, e ele, ao ser cercado pelo namorado dela e seus vizinhos no aglomerado, foge.

Segue-se então o brilhante e longo plano sequência em que o irmão de Diouana (Ibrahima Boy), usando a máscara africana, o persegue pelas ruelas e a passarela do aglomerado. E o marxista Sembène transforma a morte dela na danação do patrão, demarcada pelas batidas de percussão acelerada, em meio à multidão, utilizando recurso estético-dramático noir (Casa de Bambu, 1955), de Samuel Fuller (1912/1997), para, num contexto político-ideológico, denunciar o duplo horror colonialista.

Sua estreia em longa-metragem, o filme foi exibido na França em plena ebulição da Nouvelle Vague, tendo o mesmo frescor de “Acossado” (1960), de Jean Luc Goddard (1930). Em preto e branco, ele contrasta as atitudes dos patrões e os ambientes em que vivem com a leveza e o equilíbrio da africana Diouana, mostrando-a serena, ainda que fragilizada. Contudo, ela é duplamente vítima, por não ter sido alfabetizada e depender do casal.

Filme de estreia mostra seu vigor

Diretor de 13 filmes e escritor de 10 livros, Sembène fez sua estreia, em 1963, com o curta-metragem “O Carroceiro”, em que trata dos temas que seriam desenvolvidos em sua carreira. Em estilo neorrealista, ele expõe a vida do carroceiro que circula por Dacar transportando passageiros e cargas, até cair na armadilha de um usuário. E vai parar numa área só permitida a franceses. E o policial, além de multá-lo, confisca sua carroça e ele fica sem dinheiro para sustentar o filho e a mulher.

Ambos integraram a Mostra Clássicos Africanos, que exibiu 23 filmes de 16 cineastas africanos, de 8 a 22/09/2016, no Palácio das Artes de Belo Horizonte. São filmes terceiro-mundistas, que exerceram forte influência nos debates político-ideológicos dos anos 60/70 sobre a luta contra os imperialismos europeu e estadunidense. E cineastas como Sembène e o brasileiro Glauber Rocha (1938/1981), de Leão de Sete Cabeças (1970). integravam o grupo cujos filmes ajudaram a refletir sobre aquela época.

Negra de… (La noire de…), Drama. Senegal/França. 1966, 60 minutos. Montagem: André Gaudier. Fotografia: Christian Lacoste. Roteiro/direção: Ousmane Sembène. Elenco: Mbissine Thérèse Diop, Anne-Marie Jelinek, Robert Fontaine.

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