Salomé, Moreira César e os Civita: cortadores de cabeça

O costume de cortar a cabeça dos inimigos é por demais antigo. Na tradição bíblica, Salomé, atendendo à recomendação da sua mãe, pede a cabeça de João Batista e é atendida. Decapitado João, a cabeça é ofertada em uma bandeja de prata. Talvez seja esta a mais conhecida das histórias de decapitações de inimigos, embora elas sejam inúmeras ao longo da história.

No Brasil sempre fomos pródigos em imitar Herodias, Salomé e Herodes. Os primeiros portugueses que aqui aportaram sempre foram generosos com tal prática, especialmente com os índios que ousaram se rebelar contra eles.

Entre os escravos sublevados, são incontáveis as lideranças decapitadas, de norte a sul do nosso território. As cabeças, muitas vezes, eram expostas em praça pública, a servir de exemplo. Felipe dos Santos e Tiradentes são, provavelmente, os nomes mais conhecidos. Mas há inúmeros outros, quase anônimos, como Jerônimo Barbalho, um dos líderes da Revolta da Cachaça, cuja cabeça foi afixada no pelourinho, a mando de Salvador de Sá.

No combate aos quilombos, especialmente em Palmares, a prática era quase corriqueira na fase final da luta. Os senhores de então precisavam dar o exemplo, aqueles negros precisavam entender que a punição para a revolta seria a mais horrenda, a mais infame.

No século dezenove o mais célebre dos cortadores de cabeça foi provavelmente o Coronel Moreira César, assim alcunhado mui justamente por ter mandado degolar mais de cem pessoas na repressão à Revolução Federalista em Santa Catarina. Em Canudos, para onde foi enviado como o homem que destruiria o Conselheiro, Moreira César não teve tempo de cortar nenhuma cabeça. O bacamarte boca de sino de Pajeú, carregado com chifre de novilho, colocou sua arrogância por terra, desprezando o colete de aço que o protegia.

No século vinte a selvageria continuou, atingindo o ponto alto em dois momentos. O primeiro se deu no combate ao cangaço. A cena dantesca das cabeças do Capitão Virgulino, Dona Maria e dos demais cangaceiros mortos em Angicos repetiram-se muitas outras vezes até a liquidação total do cangaço. O segundo momento em que tal horror foi repetido foi na Guerrilha do Araguaia. Ali, as forças armadas repetiram a prática, degolando muitos dos guerrilheiros. A barbárie, como visto, atravessou milênios.

Em pleno século vinte e um a prática continua. Há uma caçada desumana no Brasil ao ex-presidente Lula. A Veja, que um dia foi uma revista, estampou em sua capa uma imagem que remete à calçada da igreja de Santana do Ipanema, em Alagoas. Ali foi feita talvez a mais célebre das fotografias dos cangaceiros mortos em Angicos, naquele desfile macabro que percorreu inúmeras cidades em mais de um estado.

A Veja estampou a imagem de Lula, sua cabeça apenas. É um sinal para a barbárie. Parece repetir a prática antiga, de Herodes aos militares do Araguaia, como a dizer a todos: “Vejam do que somos capazes, vejam como nós o aniquilaremos”.

Os Civita, com aquela capa, se alçam ao mesmo panteão de iniquidade de um Curió, de um João Bezerra, de um Moreira César, de um Salvador de Sá. Há juízes, procuradores e delegados da devassa prontos a ditar o crime, a pena capital e a executá-la, assim que se julgue o momento oportuno. E há a Veja, que já se atribuiu todos esses papéis e já antecipou o desfecho do enredo.

Para esses setores que se agrupam em torno de um único objetivo, verdadeira obsessão, o único desenlace possível é o anunciado na infame capa da revista, a decapitação de Lula, ainda que simbólica. Um outro desfecho só será possível se as ruas, ainda que simbolicamente, assumirem o papel desempenhado por Pajeú na caatinga da Bahia.

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