Contra os patifes

“Sou feito para combater o crime, não para administrá-lo. Não chegou ainda o tempo em que os homens de bem podem servir impunemente a pátria; os defensores da liberdade continuarão sendo proscritos, enquanto a horda dos patifes for dominante”.

A frase, contundentemente irônica, poderia ter sido dita por Dilma Roussef em Brasília no dia 31 de agosto passado, mas remonta a duzentos e vinte anos e dois anos atrás, em Paris: Maximilien Robespierre lançou-a da tribuna da Convention Nationale (a assembleia legislativa revolucionária) no dia 8 thermidor ano II (26 de julho de 1794). Não era um discurso de despedida. Mas acabou sendo seu último discurso. Dois dias depois, a patifaria vitoriosa enviou-o à guilhotina.

As analogias históricas, se corretamente utilizadas, põem em evidência o que há de comum em situações diferentes. As diferenças entre a França revolucionária de 1789-1794 e o Brasil redistributivo de 2003-2016 são óbvias. Mas são muitas as analogias. As que mais saltam aos olhos são aquelas em que Robespierre, nas primeiras frases deste seu derradeiro discurso, denuncia os patifes que manipulam o povo para melhor traí-lo:

“Povo, tu que suscitas temor, adulação e desprezo; tu, soberano reconhecido, que é sempre tratado como escravo, lembra-te de que em toda parte onde a justiça não reina, reinam as paixões dos magistrados […]

Lembra-te de que existe em teu seio uma liga de patifes que luta contra a virtude pública e que tem mais influência do que ti sobre teus próprios assuntos, que te teme e te adula em massa, mas que te proscreve em detalhe na pessoa de todo os bons cidadãos![…]

Saiba que todo homem que se erguer para defender tua causa […] será crivado de injúrias e proscrito pelos patifes; […] que os brados do patriotismo oprimido serão considerados brados de sedição”.
Acrescentemos “deputados e senadores” a “magistrados”, “Centrão” a “liga de patifes” e especifiquemos “da TV e imprensa golpista” em “será crivado de injúrias e proscrito pelos patifes” e teremos atualizado a denúncia de Robespierre para o Brasil de 2016.

Acusado por antigos aliados jacobinos (muitos dos quais se tinham acomodado e corrompido), de pretender se tornar ditador, ele replicou: “Os celerados nos impõe a lei de trair o povo”; se não a aceitarmos, “seremos chamados ditadores!”. A acusação é solerte. Sem dúvida, a forte personalidade e o caráter rigoroso de Robespierre (era chamado o Incorruptível) valeram-lhe exercer autoridade decisiva na Convention Nationale, numa situação de gravíssimas ameaças ao processo revolucionário aberto em 1789 pela tomada da Bastilha. Invadida pelos exércitos das monarquias absolutistas e atacada pela guerrilha ultra reacionária implantada na Bretanha e na Vendeia, a França revolucionária adotou medidas de exceção exigidas pelas urgências do combate para salvar a República, postergando “sine die” a entrada em vigor da Constituição avançada de 1793. Para executar estas medidas, a Convention Nationale delegou poderes ditatoriais aos comitês de Salut Public e de Sûreté Générale, cujos membros eram deputados eleitos por seus pares para um curto mandato de um mês, que poderia ser ou não ser renovado. A composição dos dois comitês oscilou entre trinta e doze membros (Sûreté Générale) e entre vinte e quatro e nove (Salut public). Sinal claro de que o corpo dos deputados nunca deixou de intervir em suas atividades, controlando-as de perto.

Acusar Robespierre de ter sido “o” ditador encerra, pois duas falácias. Quem autoriza o terror é tão responsável pelas consequências quanto quem o executa. Ninguém foi guilhotinado sem o aval da Convention. Ademais, o Incorruptível não fazia parte do comitê de Sûreté Générale (que comandava a polícia e elaborava a lista dos guilhotináveis e que por isso recebeu o epíteto de “Ministério do terror”), mas do de Salut Public. Não se trata, evidentemente de eximi-lo de sua participação na escalada terrorista do poder revolucionário, mas de dimensionar sua responsabilidade pessoal com um mínimo de objetividade, não deixando sem réplica os críticos desonestos que falsificam os fatos para torná-lo execrável aos olhos da posteridade.

A mais eficiente destas falsificações, porque mais difundida, foi cometida pelo cineasta polaco Andrzej Wajda no filme Danton, consagrado ao confronto que este travou com Robespierre. Não é o fato dele tomar partido que torna o filme falacioso. Não há relatos ou reconstituições históricas neutras. O problema é que Wajda não se contenta em contrastar uma imagem de Danton sempre simpática, mas sociologicamente falsa, a uma imagem sempre antipática e quase sempre grosseiramente caricatural de Robespierre. Ele mente, às vezes descaradamente, como no episódio em que diante do esboço do quadro consagrado ao Juramento do Jeu de paume (=jogo de palma, precursor do tênis), vemos Robespierre insistir com o pintor David para que ele apague da tela a figura de Fabre d’Églantine, amigo de Danton e processado com ele. «-Mas ele estava lá», replicou o pintor. «-Ele não estava», retorquiu Robespierre. Não estava mesmo; o diálogo inventado do pintor com o Incorruptível é uma corrupção da verdade histórica.

O Juramento, que marcou o início do processo revolucionário, ocorreu em 20 de junho de 1789. Os representantes do « terceiro estado» (isto é, da burguesia) que participavam dos « Estados Gerais » convocados por Luís XVI tinham exigido voto igual aos dos membros do segundo estado (clero) e do primeiro (nobreza). Perante a recusa da nobreza e do rei, que lhes vedou o acesso ao salão onde estavam reunidas as duas outras ordens, eles se instalaram na sala do jogo do proto tênis e juraram solenemente não se separar enquanto a França não fosse dotada de uma Constituição. Menos de um mês depois, no dia 14 de julho, a Bastilha foi tomada pelo povo.

David começou a preparar o quadro logo em seguida, quando Fabre d’Églantine, ator e autor de teatro bem sucedido, não atuava na política, nem era, pois deputado dos Estados Gerais; ele foi eleito em 1792 para a Convention. O cineasta polaco sequer se deu ao trabalho de construir uma versão historicamente credível. Mas pouco lhe importava: entre os que assistiram ao filme quantos podiam se dar conta da mistificação?

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor