“Mãe Só Há Uma”, duplos estigmas

Filme da cineasta paulista Anna Muylaert transita entre dupla perda de adolescente e a reafirmação de sua sexualidade em opostas classes sociais.

Como o peixinho ao mudado para o grande aquário onde turbulentas águas o faz nadar contra a correnteza para escapar ao tubo que agita as águas, o adolescente Pierre (Naomi Nero), de 17 anos, reage às novas regras ao ser obrigado a trocar de família. Nada ali assemelha-se à antiga, onde seu universo se redundava no cotidiano com a mãe Aracy (Dani Nefussi) e a irmã Jaqueline (Laís Dias), de 12 anos, escola e a banda de rock com os amigos, sem restrição alguma à sua tendência sexual.

Dito assim parece mais um enigma do que a trama de uma narrativa sobre a repentina mudança a que é submetido, sem qualquer pista sobre as razões de tão drástica ruptura. Justo para quem vive a difícil transição da adolescência para a vida adulta, numa família classe média, onde a mãe é a chefe da casa, dada à morte do pai. Nada ali, porém, indica fraturas, má convivência ou educação rigorosa. Predomina o afeto, o respeito e a abertura, sem rusgas entre ele, a mãe e a irmã.

Com esta tessitura dramática, sem oposições na primeira parte do filme, a cineasta Anna Muylaert (A Que Horas Ela Volta, 2015) aborda sua vivência, inclusive com o namorado e parceiro de banda (Vinícius Calderon), com total naturalidade. Inexistem bloqueios, proibições e traços de culpa ou estigmatização. É como se ele fosse criado assim e a sociedade burguesa não interferisse, pelo contrário o aceitasse sem lhe impor regras e, sobretudo, não o vitimasse.

Pierre perde o senso do meio

Para melhor expor seu tema, Muylaert se vale do contraponto e da ruptura, na segunda parte do filme, ao transferir Pierre do meio social em que foi criado para o da alta classe média. Ali passa a viver com os pais biológicos Glória (Dani Nefussi em papel duplo) e Matheus (Matheus Nachtergaele), e o irmão Joca (Daniel Botelho), de 15 anos. E todo seu universo esboroa. Perde o senso de seu meio e entra em conflito consigo, devido à sua tendência sexual e as novas regras familiares.

Matheus, com o qual passa a conviver anos depois de ter sido raptado numa maternidade em São Paulo, enfeixa o lado por ele ignorado. Enquanto Glória tudo faz para deixá-lo à vontade, o pai se mostra conservador, preconceituoso e irascível. E concentra com sua frustração os valores da alta classe média, eufemismo usado pelos teóricos e mídiólogos, defensores do capital, para driblar o aburguesamento deste segmento social (e não só dele). O choque entre os dois torna-se, assim, inevitável.

Antes calmo, dado à fácil convivência, Pierre, agora Felipe, reage às imposições, à atenção excessiva, às supostas facilidades que tolhem à sua liberdade de sair à noite, pertencer à banda e ver o namorado. Matheus usa o dinheiro, o elevado nível de vida, as lojas de grifes, a mesa farta para submetê-lo às impositivas regras. Não atenta para o carinho, o amor, o companheirismo, o compartilhamento, para tornar fácil sua adaptação à nova vida. Enquanto ele segue preferindo a vida classe média.

Matheus enlouquece com vestido do filho

Com extrema delicadeza e acurada sensibilidade, a câmera a se fixar nos detalhes, nas nuances, nas fortes cores, Muylaert põe o espectador neste universo pontuado pelo conflito estampado nos gestos e nas reações de Felipe. Não em agressões, mas nas provocações a demonstrar o quanto se sentia ferido, na brilhante sequência da escolha da roupa em que sai do provador usando vestido drapejado de listras transversais a realçar suas curvas, provocantemente femininas, para a ira do enlouquecido pai.

Não menos significativa é a sequência em que, de vestido vermelho choque, é instigado a jogar boliche diante dele, a mãe e o irmão, sob os olhares dos frequentadores do salão. Em desastrados lances com a bola, ele constrói em estudados gestos, como garota sensual, sua vingança não contra Glória e Joca, mas para externar sua insatisfação contra o modo como é tratado pelo pai. Este, em seu instante de ira, grita: “Já lhe demos o batom, o vestido… O que mais você quer? Fala! E ele nada responde.

Embora a questão de classe sobressaia, em razão do nível social das famílias envolvidas, Muylaert estruturou Aracy como a viúva a cuidar dos filhos, dando-lhes segurança, identidade e universo digno, sem moralismo ou julgando-a pelo que fez. É uma personagem em si fugaz, cuja influência se projeta todo tempo no comportamento de Pierre/Felipe. É isto que importa neste drama sobre a construção do respeito à tendência sexual dos 20 milhões que compõem o segmento LGBT, no país, segundo o IBGE.

Presidente golpista reforça preconceito

Longe, portanto, das mistificações da cura-gay apregoada pelos evangélicos fundamentalistas, ou negar sua importância, como o faz hoje o presidente-golpista, Michel Temer. Ao escondê-los numa repartição sem visibilidade, infraestrutura e recursos orçamentários, ao lado dos também negligenciados afrodescendentes e indígenas, condiciona ainda mais os segmentos conservadores a projetar seus preconceitos e ódio contra os marginalizados. Muylaert, com seu filme, atesta o quanto isto é má política.


Mãe Só Há Uma. Drama. Brasil. 82 minutos. Trilha sonora: Berna Ceppas. Montagem: Hélio Villela Nunes. Fotografia: Barbara Alvarez. Roteiro/direção: Anna Muylaert. Elenco: Naomi Nero, Dani Nefussi, Matheus Nachtergaele, Laís Dias. Daniel Botelho.

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