“Julieta”, escravas do acaso

Filme do cineasta espanhol Pedro Almodóvar retoma temas de sua cinematografia ao tratar das relações de mãe e filha em novo melodrama.

Não se deve negar ao cineasta espanhol Pedro Almodóvar (1951) a capacidade de retomar tema recorrente à sua cinematografia com estética e abordagem tão nova que parece tratá-lo pela primeira vez. Ainda mais ao usar o melodrama para pontuar a relação mãe-filha/o sem recorrer a choques entre elas para matizar rancores, amores frustrados ou ocultar seu passado para evitar traumas. E não o dotar do clima dos filmes do alemão Douglas Sirk (1897/1987) nos anos 50 (Sublime Obsessão,1954).

Diferente de “Tudo sobre minha mãe” (1999), em que Manuela (Cecília Roth) oculta do filho quem é seu pai, e de Volver (2006), no qual Raimunda (Penélope Cruz) assume a culpa pelo crime cometido pela filha, a relação da professora de literatura clássica Julieta Arcos (Emma Suárez) com a filha-única Antía (Bianca Parés), neste “Julieta” é de duas irmãs que se entendem às mil maravilhas. Em momento algum, o espectador prenuncia conflitos entre elas, nem explosões a demarcar suas emoções.

O acento aqui é mais interiorizado, psicológico, ditado pelo acaso e as circunstâncias a envolver a jovem Julieta Arcos (Adriana Ugarte). Principalmente nas sequências da metafórica viagem de trem em que ela encontra a um só tempo o agoniado e solitário desconhecido e o jovem pescador Xoan Feijóo (Daniel Grao), pressentindo a tragédia em ambos. Este é o fio dramático a manter o elo da trama ao longo da narrativa, com Almodóvar a ele recorrendo a intervalos para dar sentido à ação de Julieta.

Personagens são pessoas comuns

Vale-se para isso de temática aberta, centrada nos contos da escritora canadense Alice Munro (1931), Prêmio Nobel 2013 (Fugitiva), menos propícios ao melodrama, mas que ao fundi-los mantem situações do cotidiano. Foge, assim, aos arquétipos, aos personagens clichês, construindo-os como gente comum em situações atípicas. Notadamente a jovem Julieta, cheia de energia, aberta à vida, não dada à melancolia, que, no entanto, se prende aos acasos e à premonição ao se apaixonar por Xoan e com ele ir morar no litoral espanhol.

O clima opressivo ainda assim predomina devido à estruturação da narrativa em flashback e o modo como Almodóvar faz Julieta lidar com seu passado, mesmo vivendo agora com Lorenzo (Dario Grandinetti). Assim a trama oscila entre o mistério e a culpa por algo, que ela ainda não decifrou. E as fugidias informações da jovem Beatriz (Michelle Jenner), amiga de Antía, nada contribuem para reduzir suas aflições. Muito menos a diretora da instituição de retiro ao lhe dizer, enfática, que em nada poderia ajudá-la.

Nada a lembrar aqui o Almodóvar de “Ata-me” (1985) ou “Matador” (1985/86). Nestes o clima de violência, erotismo e morbidez ao impulsionar a emoção e o prazer de subjugar o outro ajudam a compreender a razão de o homem moderno extravasar o que o oprime e aprisiona. Isto, no entanto, não se pode dizer de Julieta. Ainda que saiba tratar-se de Antía, não sucumbe à culpa, por desconhecer os motivos de suas buscas. Nem o pode revelar a Lorenzo, ainda que ele tente ajudá-la, porquanto tudo é incerto.

Almodóvar conduz a narrativa com leveza

O desfecho deste “Julieta” segue, entretanto, a abordagem psicológica inicial, de ela estar submetida à imposição do acaso e das circunstâncias. De forma explícita, sucessória, a encadear passado e presente, como se estivesse atada ao inexorável igual à personagem de Edgar Allan Poe, no conto fantástico Metzengerstein, do episódio dirigido por Roger Vadim, no filme “Histórias Extraordinárias” (1968), ficando os outros dois a cargo de Federico Fellini, “Toby Dammit”, e Louis Malle, “Willian Wilson”.

Contudo, o espectador se deixa levar pela leveza com que Almodóvar conduz a narrativa, a câmera de Jean-Claude Larrieu registra as cenas com suavidade quase invisível entre um enquadramento e outro. E, além disso, mantém o tratamento de cores fortes, quentes, notadamente o vermelho nas sequências em que pontificam a jovem Julieta da atriz Adriana Ugarte, em seus instantes de melancolia e perda. E interioriza as emoções, limitando gestos e voz a ressaltar paixão e dor sem inúteis arremedos e histrionismo.

Com este tratamento, Almodóvar põe outro olhar em sua cinematografia e nas temáticas afeitas ao deboche, à parodia, ao escracho e à gozação do conservadorismo espanhol e suas reminiscências franquistas (Carne Trêmula. 1997). E preserva sua tendência de abordar o universo feminino numa sociedade machista (Que fiz eu para merecer isto?, 1984), onde a relação mulher-homem muitas vezes carece de paixão e companheirismo. Antía pelo menos abre espaço para ver Julieta de outro modo, ainda que o atavismo predomine e elas tenham de se amparar uma na outra.


“Julieta”. Drama. Espanha. 2016. 100 minutos. Edição: José Salcedo. Música: Alberto Iglesias. Fotografia: Jean-Claude Larrieu. Roteiro: Alice Munro/Pedro Almodóvar. Direção: Pedro Almodóvar. Elenco: Emma Suárez, Adriana Ugarte, Dario Grandinetti, Michelle Jenner, Blanca Parés, Rossy de Palma.

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