121 dias de Golpe: A perigosa quebra do Contrato Social

"Quando o arbítrio se estabelece contra seus adversários, não comemore, pois, em algum momento, você também será alcançado por ele".

Esse enunciado acaba de ser rigorosamente posto em prática. O vazamento da delação de um empreiteiro (OAS) citando o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), desencadeou uma crise entre o judiciário e o Ministério Público Federal (MPF), com troca de mútuas acusações.

Enquanto ministros do STF acusam formalmente o MPF de abuso de poder, os procuradores contra argumentam insinuando que esse zelo é seletivo, como resume um procurador ao dizer que “éramos lindos até o impeachment se tornar irreversível. Agora que nos usaram para tirar quem queriam, desejam dizer chega” (Painel, FSP, 24.08.16).

Vejam a gravidade dessa frase. O procurador confirma o que todos já sabiam: o golpe em curso de fato é uma trama, envolvendo diferentes estruturas de poder, como disse o Senador Romero Jucá (PMDB) em gravação revelada pelo delator Sergio Machado.

Quem analisar os fatos com isenção terá que reconhecer que nem o STF ou qualquer outra instituição fez qualquer ponderação, até então, contra as reiteradas violações das garantias individuais praticadas em desfavor da maioria dos investigados na chamada operação “lava jato”.

Não se conhece por parte do STF e do MPF, na condição de guardiãs das normas legais, qualquer manifestação para conter os arbítrios praticados contra o ex-presidente Lula e a presidenta Dilma, aí incluída a divulgação espetaculosa de gravações obtidas através de grampos ilegais contra alguém que goza de proteção constitucional.

Ao contrário. Se a delação é contra Lula, Dilma ou outro dirigente das forças de esquerda e eventualmente vaza, a direita diz que é liberdade de expressão. Se o vazamento alcança os quadros da direita, então é molecagem, abuso de autoridade, etc. e é causa suficiente para anular uma delação em pleno desenvolvimento.

O STF e o MPF, embora formalmente acionados, deixaram o arbítrio prosperar mesmo quando a perícia do Senado e o próprio MPF concluíram que Dilma não havia cometido pedalada e tampouco tinha qualquer responsabilidade nos decretos de abertura de crédito. Se não havia crime de responsabilidade, obviamente não poderia haver processo de impeachment. Julgamento pelo “conjunto da obra” é de natureza política e só se aplica nos regimes parlamentaristas onde existe o voto de desconfiança.

Assim, como é absolutamente verdadeiro afirmar que quando nos calamos diante do arbítrio em algum momento nós seremos vítima dele, é igualmente razoável supor que ele também poderia alcançar o STF. E alcançou. Essa é a lógica do arbítrio.

Agora nós estamos diante da eminência de um golpe, que nada mais é do que a consumação dessa sequência de arbítrios, de ruptura do frágil contrato social brasileiro. A intensidade e o alcance da reação popular dará a medida de quanto a sociedade entende ou não o risco de perder o que já conquistou até aqui.

Por isso, chega a ser um deboche, uma falta absoluta de respeito à inteligência alheia, a desfaçatez com que a direita procura “legalizar” o golpe desencadeado contra a presidenta Dilma Rousseff. Alegam que o processo segue o rito normal, inclusive presidido pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF). Só esqueceram de dizer que se não há causa – o crime de responsabilidade – não poderia sequer haver o pedido, quanto mais o processo de impeachment.

Argumentar que o processo segue ritos legais é um escapismo cínico, pois não basta que o ritual seja "legal". É preciso que haja uma causa legal, nesse caso o crime de responsabilidade, cuja materialidade, por mais contorcionismo retórico que a direita procure exercitar, nunca foi demonstrado. As evidências indicam exatamente o contrário, como demonstrou a perícia do Senado e o parecer do MPF.

Episódios históricos, como o caso de Galileu Galilei, Dreyfus e o Macarthismo, para ficar nesses exemplos, também seguiram ritos legais, onde até mesmo a ampla defesa e os demais preceitos processuais estiveram presentes. Mas a história mostrou que, em todos os casos, se tratava de uma grande farsa, uma artimanha urdida para esconder propósitos e objetivos inconfessáveis.

Em 1633 o cientista Galileu Galilei foi condenado a morte na fogueira por sustentar que o sol e não a terra era o centro do universo. Só escapou das labaredas renegando a sua própria tese e admitindo que era mera suposição. Argumente-se, a favor do tribunal da inquisição, que o conhecimento científico de então não era suficiente para demonstrar ou contestar a teoria de Galileu Galilei.

Em 1894, o capitão de Artilharia Alfred Dreyfus, oficial do Exército francês, foi sentenciado à prisão perpétua na Ilha do Diabo (Guiana Francesa), sob a acusação de vender informações secretas aos alemães. Não houve protesto. A opinião pública também o condenou. Apenas 4 anos depois, graças à personalidades como o escritor Emile Zola, que denunciaram as inúmeras irregularidades do processo, pôde se constatar que tudo não passava de uma grande farsa, montada para desviar a atenção de falcatruas cometidas pelo exército francês. Dreyfus era um bode expiatório. Sua escolha, dentre tantos que poderiam ser sacrificados, foi motivada pelo antissemitismo, pelo fato dele ser judeu.

E o macarthismo, liderado pelo senador americano Joseph McCarthy, durou de 1950 a 1957. Era motivado pelo mais odioso e primário anticomunismo. O objetivo central era combater ideias progressistas, tendo os comunistas como alvo predileto. Mas avançou para recalques e também alcançou artistas e intelectuais americanos que em algum momento tinham contrariado interesses do sistema americano. É celebre a famosa a Lista Negra de Hollywood, onde estavam marcados os artistas que não poderiam trabalhar no cinema americano. A "caça às bruxas" perdurou até que a própria opinião pública americana ficasse indignada com as flagrantes violações dos direitos individuais, graças em grande parte à atuação do jornalista Edward R. Murrow.

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