“A Viagem de Meu Pai”, espirais da idade

Cineasta francês Philippe Le Guay usa paródia e humor para abordar armadilhas da terceira idade, relações familiares e lembranças da infância.

O sorriso maroto do octogenário Claude Lheminier (Jean Rochefort, 1930) oscila entre o deboche e a paródia de quem zomba de si e dos que o rodeiam. Muitas vezes perde a lateralidade, não consegue amarrar o cadarço do tênis e confunde pessoas, mas nem por isso deixa de zombar de sua cuidadora e enredar-se nas próprias artimanhas. Tenta, assim, ludibriar o derradeiro ciclo da idade e os que o cercam, sem atentar para a inexorável chegada do alzheimer, quando tudo à sua volta se apaga.

Mesmo com tema propício à derrisão e ao melodrama, o cineasta francês Philippe Le Guay (1956), ao adaptar com seu corroteirista Jérôme Tonnerre o livro “Flórida”, do escritor Florian Ziller, dota-o de equilibrado drama e sutil humor. A história lhe permite, assim, construir uma narrativa com várias camadas dramáticas e subtramas a pender para situações psicológicas, rememorações da infância, relações freudianas, enquanto internaliza uma perda da qual Lheminier ainda não se recuperou.

Industrial aposentado, Lheminier vive com a filha Carole (Sandrine Kiberlain), executiva de sua ex-empresa, numa velha mansão nos arredores de Paris. Sua memória já não o permite administrar a si próprio, precisando de cuidadora para ajudá-lo a superar suas deficiências de percepção das pessoas e do entorno. Isso exige reduzir seu campo de ação, de situações e de objetos, embora tenha seus instantes de lucidez aos 86 anos. Surgem daí as inevitáveis resistências.

Doença fica sem controle

Numa delas, a câmera de Le Guay (Pedalando com Moliére, 2013) faz com ele o percurso do setor de produção de papel de sua ex-empresa, onde as máquinas produzem sem operador. Indignado, ele entra pela central de controle computadorizada em que estão dois operadores e critica-os por terem deixado as máquinas sozinhas. Em apenas duas sequências são configuradas sua defasagem tecnológica e a inútil tentativa de mostrar-se ativo. Noutra melancólica situação, ele se esforça para vestir o pijama, sem ver Carol a observá-lo, mas não consegue fazê-lo.

São sequências da trama central, nas quais Le Guay trabalha a relação dele com a filha e a cuidadora romena Ivona (Anamaria Maringa). Elas sempre caem em suas artimanhas, como as de jogar no chão bibelôs e objetos e correr para sentar na cadeira, fingindo ler jornal. São situações de humor às vezes ácido, em que demonstra esperteza e lucidez. Principalmente ao pressionar a família do recém falecido ex-amigo a não o enterrar junto à sua mulher, devido a rusgas financeiras entre eles.

Mesmo com estas construções, o filme mantém o espectador atento, devido ao agravamento de seu estado e ao esforço de Carole para não o internar. Mas também pelas sequências em que Le Guay, ao usar imagens em flashbacks de seu subconsciente, pontua sua infância durante a II Guerra Mundial e sua relação com a mãe, em quem buscava proteção em instante de fragilidade. Inclusive ao lamentar a ausência da filha casula Alice (Andrey Luoten), sempre a prometer e não o visitar.

Lheminier sofre duplo trauma

Le Guay constrói em torno de Alice, mais do que na trama central, um mistério de grande simbologia que a liga às reminiscências infantis do pai, no período da guerra. Ele se vê diante dela de camiseta branca com o círculo de sangue a crescer ao lado do coração, para, depois, num flashback, ver a granada explodir a cabeça do guerrilheiro da Resistência Francesa. Ele então sofre não um, mas dois choques a aumentar a confusão em sua cabeça tomada pelo Alzheimer.

Desta forma, Le Guay sai da zona de conforto da derrisão, recurso narrativo fácil para justificar o ódio dele a Thomas (Laurent Lucas), companheiro de Carole, com o qual vive às turras. Sua vida é uma sucessão de perdas, sendo a da filha para o genro insuportável, ainda que troquem pesadas palavras, sendo as dele de baixo calão. Mesmo sua iniciativa de visitar Alice na Flórida é uma constatação de que, enfim, decidiu pôr sua fantasia à prova. Contudo, esta não se justificava diante de sua situação.

Com esta teia narrativa, Le Guay longe de fugir de seu tema, torna-a complexa, com momentos de humor, dado à maneira como Lheminier joga com a própria doença. Nunca a leva à sério. Está sempre articulando contra ser levado para o recanto do idosos, inventando artifícios para ludibriar Ivona, seduzindo-a, subornando-a, ou fingindo esquecer palavras e datas.

Rochefort é o senhor do filme

Conta muito a interpretação do veterano Jean Rochefort (O Artista e a Modelo, Fernando Trueda, 2012), a projetar cinismo e parodiar a si mesmo, mudando do sorriso à galhofa, do horror à ternura. Mesmo ao estar desorientado na estrada de madrugada de pijama ou se render a Carole na mais tocante sequência do filme, ao deixá-la trocar sua roupa. Le Guay o filma em plano aproximado buscando matizar suas intenções, num filme que flui com tensão e suavidade equilibradas, ainda que o tema seja árduo.



“A Viagem de Meu Pai”. (Flórida). França. Drama. 2015. 110 minutos. Montagem: Monica Celeman. Música: Jorge Arriagada. Fotografia: Jean-Claude Larrieu. Roteiro: Jérôme Tonnerre/Philippe Le Guay. Direção: Philippe Le Guay. Elenco: Jean Rochefort, Sandrine Kiberlain, Laurent Lucas, Anamaria Maringa.

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