“Janis – Little Girl Blue”, fenômeno de uma época

Em complexo e intimista olhar sobre a cantora e compositora Janis Joplin, cineasta estadunidense Amy D. Berg decifra o fenômeno do rock-blues.

De voz rouca, entonação rasgada a mesclar dor, frustração e revolta, Janis Lyn Joplin surge nesta cinebiografia como capaz de se expor, ser terna, sensível, carismática e de uma risada explosiva e cativante. Nada demais para a garota da pequena Port Arthur, Texas, que, adolescente, cantava em corais da escola, usava sapatos sem meias e saias justas, cabelos à beatnik e aderia às rodas dos garotos, tendência que chocava sua família.

Com olhar acusado, a cineasta/roteirista estadunidense Amy D. Berg desconstrói, neste “Janis – Little Girl Blue”, a imagem da Janis Joplin criatura do show business, ao mostrá-la como fruto de uma época de grande inquietação. De família classe média, pai engenheiro, mãe professora, primogênita de três irmãos, desde cedo se insurgiu contra o status quo. “(…) ela nunca pôde compreender como fazer para ser como todo mundo. Graças a Deus”, ironiza a amiga de infância Karleen Bennett.

Berg estrutura o filme de modo a que o espectador entenda o percurso por ela feito de Port Arthur a Los Angeles, na Califórnia. Suas idas e vindas são configuradas por trilhos, trens e pontes. São imagens em p&b e a cores de filmes da década de 50/60, de programas de TV, de Talk Shows, de recortes de jornais e revistas, fotografias da família e de sua infância, adolescência e carreira. Enfatizam a imagem da jovem com tendência a engordar, solitária, carente de afeto, vítima de bullying e com raras amigas.

Janis muda em São Francisco

Mas é na Austin de 1962 com sua agitada noite, em que os afros-estadunidenses cantavam blues e folk, que ela, aos dezenove anos, inicia sua trajetória no clube Walter Creek Boys. “(Eu) costumava cantar em clubes apenas por zoeira”. Contudo, este foi seu aprendizado de intérprete, influenciada pelos mitos afros Odetta (1930/2008), Bessie Smith (1894/1937), Aretha Franklin (1942), Billie Holiday (1915/1959) e, por último, Otis Redding (1941/1967), através dos quais lapidou a sua voz.

Assim ela vive até 1963, quando muda para a metrópole californiana São Francisco, onde os movimentos contra a segregação racial e a marginalização feminina ocupavam as ruas, e as comunidades hippies, grupos culturais e de tendências sexuais ditavam os comportamentos. “Éramos, explica o músico David Getz, da Banda Big Brother and the Holding Company, parte dessa coisa revolucionária e contracultural da revolução musical que iria mudar o mundo”, como se veria depois.

Janis, morando no apartamento da amiga afro-estadunidense Jao Whitaker, se integra a esse movimento, canta blue nos bares e se envolve com a comunidade gay. “Não acho que ela ficava com garotas para chocar. (…) fazia isso porque era o que sentia naquele momento”, diz Jao. Isto incluía aderir a modismos e o que “rolava”. “Beber e drogar fazia parte do contexto e ela necessitava que dissessem como ela era ótima”, elucida.

Idas e vindas e as crises

Sua carreira, no entanto, não deslancha, e ela fica entre São Francisco e Port Arthur para se recuperar do vício de heroína. Num desses retornos, em 1966, se torna vocalista da Banda Big Brother And The Holding Company, com o qual grava três discos. E, para sua suprema glória, torna-se ícone pop ao se apresentar no Festival Pop de Monterey, Califórnia, em 1967. Então dá-se sua curta e meteórica carreira de três anos na cena musical dos EUA e internacional (1967/1970), como a maior cantora do rock.

“Depois de Monterey, tudo está acontecendo. Um dia serei uma estrela”, escreveu à mãe. No entanto, ela logo abandonaria a banda e criaria outra, a Kosmic Blues Band, e ocorre a explosão no Festival de Woodstock, em 1968. Não era mais a vocalista, sim o fenômeno, a superação da garota “vergonha da família”, em todas as mídias. Isto a fez montar, em 1970, a Full Tilt Boogee Band, com quem gravaria “Pearl”, seu último disco, lançado postumamente.

Sua vida particular, entretanto, foi ditada pela solidão. Getz relata que ela detestava as horas livres. E como os integrantes da banda podiam ir para casa com suas garotas, ela ficava em casa sozinha, sem ter com quem relaxar. Nesse período houve o interregno do carnaval de 1970, quando esteve no Rio de Janeiro e viajou pelo Nordeste. Foi nesta viagem que se apaixonou pelo estadunidense David Niehaus, com quem viveu nos EUA por curto período, preferindo shows e gravações por mantê-la ocupada.

Deixou o legado de música feérica

Ao contrário de seu compatriota Mark Rydel (1928), que em “A Rosa” (1979), a mergulhou na derrisão, Berg opta por destitui-la do mito, tornando-a humana, falível, brincalhona, a levar a vida a seu modo. E no desfecho, ao invés de enquadrá-la caída ao lado de sua cama num hotel de Los Angeles, aos 27 anos (19/01/1943-04/10/1970), usa a metáfora da piscina de água translúcida: visível, transparente, calma. Em sua carreira gravou cinco discos, em três anos, o último, “Pearl”, vendeu quatro milhões de cópias. Um legado inquietante, desbragado, feérico e intenso de uma vida.


"Janis – Little Girl Blue". Documentário. Estados Unidos. 2015. 103 minutos. Edição: Billy McMillan/Garret Price/Joe Beshen Kovsky. Fotografia: Francesco Carrozzini/Jenna Rosher. Direção/roteiro: Emma D. Berg. Narração: Cantora Cat Power.

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