Os desafios da esquerda

Não quero afirmar, mas suspeito, pelo que se vê no Senado, que em pouco mais de duas semanas a presidente eleita Dilma Rousseff deixará a Presidência da República. Estará completo o golpe parlamentar, judicial e midiático a serviço da grande burguesia brasileira.

Ela própria – a presidente eleita – parece já não crer num retorno ao Planalto. Tanto que, dizem os jornais, prepara uma carta, nos moldes da de Getúlio Vargas, a ser divulgada logo após a consumação do “impeachment”. Um documento para a história, deseja a presidente, denunciando o golpe de que ela – e, sobretudo, o Brasil – foram vítimas.

Assim, antes mesmo de comemorarmos o Sete de Setembro, é provável que já estejamos sob a batuta de Michel Temer e as sombras de um governo contrário aos interesses do Brasil e do povo brasileiro, autor de um formidável retrocesso político, social e econômico (expresso nas reformas neoliberais) que vem sendo amplamente denunciado.

E quanto à esquerda, não nos iludamos, a grande derrotada?

Penso que a ela cabe, como passo inicial, manter e aprofundar um rompimento cabal, inegociável com o governo golpista.

Ao mesmo tempo deve, a meu ver, realizar um exame crítico e autocrítico desse período que vem de 2003 até hoje. Não no sentido de purgação, como imaginam alguns, de arrependimento, ou então de eximir-se de equívocos ou simplesmente buscar culpados. Não, esse psicologismo não se coaduna com a necessária racionalidade na ação política. Tampouco certo intelectualismo de outros, que a levaria a abandonar a cena – total ou parcialmente – para refugiar-se em intermináveis seminários, afogar-se em teses e palpites.

O desafio da esquerda é, como recomendava o velho Lênin, enfrentar em extensão e profundidade a “análise concreta da situação concreta”, extraindo daí as imprescindíveis lições.

Qual a exata natureza dos governos populares de Lula e Dilma e em que medida, além dos inegáveis benefícios ao povo trabalhador, serviram para uma acumulação de forças, tendo em vista os objetivos estratégicos da esquerda? Acaso alguns setores não perderam essa perspectiva, atendo-se ao momento visto quase como um fim em si mesmo, numa dinâmica meramente reformista?

Em que medida a esquerda deslocou seus principais quadros para tarefas de governo, desguarnecendo as frentes partidárias e do movimento social, estas sim mais capazes de promover uma inclusão social também em termos de cidadania e consciência politica? E em que medida muitos desses quadros se deixaram enfeitiçar pelo poder e suas óbvias benesses, mitigando ou mesmo perdendo a perspectiva de transformá-lo? Em que medida essa espécie de conversão influenciou as análises e decisões dos seus partidos?

Quantos da esquerda se mantiveram, tímidos, nos marcos do possibilismo, ou seja, nos limites do que lhes parece possível, aqui e agora, sem considerar a possibilidade de ampliar essas fronteiras? Ou viram-se aprisionados pelos muros do corporativismo? Ou ainda os pragmáticos, que subestimam a estratégia e superestimam a tática, do que derivam desvios significativos, como as composições eleitorais programaticamente avessas, numa espécie de mimetismo que empalidece – por vezes anula – o que há de esquerda na esquerda.

Os pragmáticos – embora a maioria deles não se dê conta disso – são a reencarnação das ideias de um célebre membro da socialdemocracia alemã (ao tempo que assim se denominavam os comunistas), Edward Bernstein, que nos últimos anos do século XIX anunciou: “O movimento é tudo, o objetivo final, nada”. A frase tornou-se emblemática de uma proposta de revisão do marxismo que não visava, como fazia Lênin, revisá-lo para atualizá-lo, tornando-se mais ajustado às novas condições do imperialismo nascente, mas despi-lo dos seus ingredientes revolucionários, da sua capacidade de orientar as revoluções latentes em direção ao socialismo. Não por menos é que Bernstein foi considerado o “pai do revisionismo” e mentor do que Lênin qualificou de “cretinismo parlamentar”.

Penso que a nossa esquerda tem pela frente – caso deseje recuperar seu protagonismo na cena política brasileira – o desafio de se reposicionar diante das três frentes que, a meu ver, devem compor sua ação politica, qual sejam, o movimento social, a luta de ideias e a esfera institucional. Uma recomposição que permita a interligação sinérgica entre elas, considerando sempre as duas primeiras como estruturantes. O que se tem visto, ao contrário, é uma perigosa ênfase à atuação institucional. Lembremo-nos que a presença da esquerda nessa frente é muito importante, mas o que verdadeiramente constrói a hegemonia e dá concretude à transformação da sociedade, é o movimento social e a luta de ideias, no contexto dos confrontos de classes.

Não estou aqui para dar lições a ninguém. Mais indago, do que afirmo. Penso, no entanto, que os questionamentos aqui alinhados indicam algumas das reflexões às quais a esquerda brasileira não poderá se furtar.

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