“Big Jato”, Inversão do afeto

Filme do cineasta pernambucano Cláudio Assis trata do dilema de jovem diante da imposição do patriarcado e dos nostálgicos sonhos dos anos 60.

Há uma clara linha divisória na construção dos entrechos deste “Big Jato” entre o núcleo familiar em que o jovem Chico (Rafael Nicácio) vive seu duro cotidiano e a tentativa de construir sua identidade em seus próprios termos. Então, de um lado se submete à rispidez do pai, Francisco (Matheus Nachtergaele) durante a limpeza de fossas de residências com o caminhão pipa, e de outro se entrega ao mundo de fantasias e prazeres a que o encaminha o tio radialista Nelson (idem, Matheus Nachtergaele).

Esta dualidade se completa através de sua relação com o mago Príncipe (Jards Macalé), de quem ouve citações que o levam ao mundo das ideias. Completando, em suma, os tríplices esteios de sua formação, enquanto jovem na pequena Peixe de Pedra, no sertão pernambucano. Tratado aqui, pelo cineasta Chico Assis (Amarelo Manga, 2002), e seus roteiristas Ana Carolina Francisco e Hilton Lacerda, a partir da autobiografia do jornalista/escritor Xico Sá, como material bruto a ser por lapidado.

Frequentemente filmes que tratam de rito de passagem tendem às estripulias e às paixões juvenis classe média. Assis, porém, foge a este clichê ao equilibra-se em três tramas, principalmente na do núcleo familiar. Mais complexa, por envolver as complexas relações de Francisco com os três filhos e a companheira (Marcelia Cartaxo) e a persistência do patriarcalismo. Mas também às mudanças em curso na cidadezinha, numa alusão às mutações político-econômico-sociais no Nordeste.

Francisco reflete o patriarcalismo

As mudanças são tipificadas na discussão de Francisco com a Companheira, quando ela lhe diz que ele vive de limpar fossas, numa época em que as residências começam a ter rede de esgoto. Mostrando-lhe o quanto ele vive os estertores de uma etapa ligada ao senhor de engenho e ao sistema escravagista. Ele mesmo reflete a decadência deste modelo político-sócio-econômico ao enfeixar o comando da família tal patriarca machista e alcóolatra. E logo, ao que se espera, irá pertencer só à história.

Sua arcaica concepção sintetiza o modo como zomba de Chico por ele gostar de poesias e elogia o filho George (Vertin Moura), que prefere Matemática. Esta, a seu ver, garantirá mais futuro que os versos. Concepção tão retrógrada quanto a do presidente golpista, Michel Temer e seus asseclas, serviçais da míope burguesia brasileira ao esvaziar o Minc. Ambos têm ojeriza à cultura por estimular a reflexão sobre seus escusos interesses. Não a tratando sequer como setor estratégico para a defesa da produção nacional, dominada pela indústria cultural dos EUA.

Em síntese, Chico ao ser estigmatizado pelo pai encontra no mago Príncipe, com seus pendores metafísicos, e no tio Nelson, entregue aos nostálgicos Anos 60 e à visão libertária, o apoio necessário para dar sentido à sua existência. Em suma, um o leva à reflexão e criação poética e o outro o estimula a ir pela noite, à paixão pela bela Ana Paula e aos prazeres da cama e da bebida, em real contraponto ao mal-humorado pai.

Assis muda o papel da mulher

Ao contrário de “Baixios das Bestas” (2006) onde na sequência do galpão Bela (Dira Paes) é apenas objeto de prazer, no jogo de riquinhos, neste “Big Jato”, a mulher é agente da ação. Caso da Mãe que ao defender o filho enfrenta Francisco abertamente, cobrindo-o de impropérios para depois, ao vê-lo à beira do coma alcóolico, dele cuidar para demonstrar seu amor, reprimido pela violência a atingir os filhos e só poupar a filha pequena.

Porém, se nos filmes de Assis o carinho e o olhar afetuoso pelo outro rareiam, os diálogos são marcados pelo ódio e o rancor. Em “Big Jato” beiram o descontrole e a insanidade, tal a ferocidade com que Francisco despeja sua ira contra Chico. Linguagem tão feroz quanto a da prostituta, o amante e o faxineiro nos embates criados por Plínio Marcos, em sua peça “Navalha na Carne” (1969) e mantidos na adaptação de Braz Chediaki para o cinema (1974). Torna assim o realismo uma fabulação sem fadas.

Em “Big Jato” sua câmera se mantém fixa a espreitar os personagens, como se a tela fosse a cena aberta do palco, a exemplo da sequência da discussão de Francisco com o filho Chico e a interferência de George. Ou quando a Companheira o desanca por ele ganhar o sustento limpando fossas, enquanto ela mantém oculta a venda de perfume, com freguesia em franca expansão. É uma estética que ao captar os diálogos reforça o poder da linguagem, traduzindo o interior dos explosivos personagens.

Câmera capta também o suave

Se há dureza na ação e nas frases cortantes e ferinas, existem também sequências em que a câmera flagra o suave encontro de Chico com a natureza observando a imensidão do canyon, escavado em milênios. E a relação amigável de Nelson com o PM que o prendeu por consumo de maconha e o embalo que ele se permite à noite e em seus devaneios sobre os Beatles. Sequências que confirmam a capacidade de Assis de variar sua estética e abordagem, mantendo os temas que marcam sua filmografia.


Big Jato. Brasil. Drama. 2015. 97 minutos. Trilha Sonora: DJ Dolores. Montagem: Karen Harley. Fotografia: Marcelo Durst. Roteiro: Ana Carolina Francisco/ Hilton Lacerda, baseado na autobiografia de Xico Sá. Direção: Cláudio Assis. Elenco: Matheus Nachtergaele. Marcelia Cartaxo, Rafael Nicácio, Vertin Moura, Jards Macalé.

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