“Raça”, duplas faces

Em cinebiografia do corredor estadunidense Jesse Owens, cineasta jamaicano Stephen Hopkins expõe racismo nos EUA e arianismo hitlerista nas Olimpíadas de Berlim, em 1936, para mostrar o quanto se confundem.

A chegada do corredor James Cleveland Owens, ou simplesmente Jesse Owens (1913/1980), a Nova York, após ter ganho quatro Medalhas de Ouro nas Olimpíadas de Berlim, em 1936, foi apoteótica. Milhares de estadunidenses foram às ruas festejá-lo. Mas dias depois, ao se dirigir ao salão onde seria homenageado, teve de entrar pela porta dos fundos, pois a entrada principal era vedada a afrodescendentes. Assim, a glória conquistada nas pistas alemãs o trouxe de volta ao cotidiano de seu país.

Esta síntese costurada pelo cineasta jamaicano-britânico, Stephen Hopkins (A Sombra e a Escuridão, 1996), e seus roteiristas Anna Waterhouse e Joe Shrapnel mostra seus percalços enquanto atleta afrodescendente nos EUA da década de 30. Jovem vencedor dos 100 metros rasos em 9,4 segundos, em 1935, ele foi indicado ao treinador Larry Snyder (Jason Sudeikis), da Universidade de Ohio, pela qual competiu e ganhou a vaga para Berlim, como candidato a medalhas.

Nesta condição, Hopkins o constrói como o atleta cujas ambições estavam nas pistas, não se envolvendo nos conflitos raciais, polarizados nos EUA. Tanto que na sequência em que está à mesa numa conversa com a família e o representante da organização de luta contra o racismo é advertido sobre os riscos de competir em Berlim e perder. Seria uma derrota não só dele, mas dos afrodescendentes e uma grande vitória para Hitler, porém ele tinha outras ideias.

Reifenstal vive às turras com Goebbels

Para melhor configurá-lo, Hopkins e seus roteiristas centram a narrativa em sua paixão pela bela Ruth (Amanda Crew) e em seus treinos para as Olimpíadas, mas criam em torno dela várias subtramas nos EUA e na Alemanha. Numa delas se pontifica Avery Brundage (Jeremy Irons), presidente Comitê Olímpico dos EUA, que, em negociações com o Ministro da Propaganda de Hitler (1889/1945), Joseph Goebbels (Barnaby Metschurat), se vale do cargo para obter escusos contratos com o III Reich.

A subtrama mais ousada, entretanto, inclui a documentarista alemã Leni Reifenstahl (Clarice van Houten), a montar as filmagens do evento com 45 câmeras, balão dirigível, dezenas de spots e vasta equipe técnica. No que resultaria no clássico “Olímpia” (1938), com encenadas imagens de Owens. Ela (1902/2003), em constantes turras com Goebbels (1897/1945), acusa-o de boicotar seu trabalho e lhe pede para não interferir. Numa demonstração de que Hitler lhe dera total liberdade para filmar a proclamada “Olimpíada das Olimpíadas”, para coroar o arianismo.

Estas subtramas, mescladas à história central, reforçam a ideia de que Owens, atém-se apenas às competições, embora Goebbles procurasse delas o afastar, para não constranger Hitler e sobretudo derrubar a propaganda da supremacia ariana. Ainda assim, Hopkins o mostra condicionado pelo racismo estadunidense, pois ao chegar a Berlim pergunta: Onde ficam os quartos dos negros? Não havia, pois Brundage exigira quartos iguais para afros, judeus e caucasianos estadunidenses.

Brundage dissimula racismo nos EUA

Contudo, Hopkins faz a dualidade racismo/supremacia ariana permear toda a narrativa. Enquanto Goebbles insistia que os atletas afros e judeus não deviam participar das olimpíadas por serem considerados inferiores, Brundage desconsiderava o racismo ao dissimular que nos EUA aos afros era proibido o acesso a banheiros, restaurantes e ônibus pela porta de frente, e, além disso, ganhavam menos que os caucasianos. Entretanto os defendeu e aos judeus, exigindo lisura nas competições em Berlim.

A expectativa de Hitler e do staff nazista era o trinfo dos atletas alemães contra afros e judeus. As competições de atletismo nos 100, 200 e 400 metros rasos e no salto à distância, porém, derrubaram a propaganda da supremacia ariana. Owens ultrapassou o alemão Lutz Long (David Kroos) na linha de chegada dos 100 metros rasos com 10s25 milésimos, e ganhou ainda as outras três, conquistando quatro medalhas de ouro. E para surpresa de Hitler, deram a volta olímpica abraçados, se tornando amigos.

Hitler, ao que registra Hopkins, deixou seu camarote para não cumprimentar Owens, mas este diz em sua biografia que ele ao vê-lo ergueu a mão. E lamenta que o então presidente dos EUA, Franklin D. Roosevelt (1933/1945) nunca o tenha enviado um telegrama. Estes bastidores levam o espectador a entender as falácias do nazismo e a persistência do racismo nos EUA, onde os conflitos raciais são sistêmicos a ponto de no século XXI continuar gerando ódio e vítimas.

Owens pertence a outra época

Deste modo, as Olimpíadas de Berlim marcam o peso da política e do racismo nos esportes, provocado pela propaganda hitlerista. Eles retornam com força nas Olimpíadas do México, em 1968, nos punhos erguidos dos atletas afros-estadunidenses contra a discriminação racial nos EUA. Owens atravessou estes dois ciclos, em que competir e vencer nas olimpíadas deixou de ser apenas uma atitude esportiva e sim, protesto.


Raça. “Race”. Drama. Esporte. Canadá/Alemanha. 2015. 134 minutos. Montagem: John Smith, Fotografia: Peter Levy. Roteiro: Anna Waterhouse/Joe Shrapnel. Direção: Stephen Hopkins. Elenco: Stephan James, Jason Sudeikis, Jeremy Irons, Clarice van Houten.

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