Duas táticas. E o esquerdismo Geist der utopie*

“Decerto que um defensor da revolução proletária pode concluir compromissos ou acordos com capitalistas. Tudo depende de que espécie de acordo se conclui e sob quais circunstâncias” (Lênin, “Sobre os compromissos”, março-abril de 1920).

Chega a ser enfadonho, tristonho mesmo, ter que constantemente repisar elementos fundamentais de lógica da ciência política marxista para os nossos infelizes dogmáticos (de causa interesseira) e que sempre arrotam dar conselhos à esquerda. Mesmo que a história já os tenha ensinado de maneira cristalina, inúmeras vezes.

Exemplos: em 1985 a recusa de derrotar a ditadura militar pelo Colégio Eleitoral (ademais, o PT se negou a liberar os votos para ajudar a eleger a chapa Tancredo-Sarney); trotskistas e o PT insistiram no movimento inútil “só diretas”; mais na frente, o voto contra o texto Constituição de 1988 alegando sê-la “burguesa”; recentemente o abandono da Presidenta Dilma, pretextando a luta contra o “ajuste fiscal” ao invés da principalidade política da batalha contra a conspiração aberta pela direita ultraliberal; no que se seguiu uma completa subestimação inimiga ao desdenhar da marcha golpista de 2015 de amplos setores à esquerda; no que se somaram a outros que se juntaram objetivamente ao golpe ao defender um “Fora todos” igualando Dilma aos golpistas; O PCdoB propôs enfaticamente uma “Frente ampla, democrática” para barrar o golpe insidioso, ao invés de uma “Saída pela esquerda” como alguns defenderam.

Estes são alguns fatos políticos e históricos comprovados da infantilização, da desorientação e mesmo de covardia presentes atualmente no espectral arco do esquerdismo brasileiro. No essencial, caminhos sinuosamente opostos em matéria de tática política. Covardia por não enfrentar a sua própria ausência, por inventar atalhos falsos e de autossatisfação.

Manobras no quadro defensivo

“Aceitar o combate, quando é claramente vantajoso para o inimigo e não para nós, constitui um crime, não servindo para nada os políticos da classe revolucionária que não sabem ‘manobrar’, que não sabem concertar ‘acordos e compromissos’ a fim de evitar um combate que todos sabem ser desfavorável” (Lênin, Esquerdismo, doença infantil do comunismo, cap. “Nenhum compromisso? ”)

Se aprovado definitivamente no Senado, o golpe mal disfarçado de “impeachment” imporá uma profunda derrota do ciclo iniciado em fins de 2002. Mas o revés já ocorreu, em qualquer das hipóteses. Óbvio que sempre soubemos e aprendemos com o caráter cíclico, sinuoso e resolutivamente súbito das lutas de classes – mesmo da trajetória das revoluções. Mas tem muita gente boa que não aprende! Refiro-me especialmente aos que subestimavam o golpe travestido – uma vasta operação conjugada e ainda não desvelada por completo.

De fato, enfraquecido já desde o resultado geral das eleições de 2014, o segundo governo Dilma deparou-se ainda com seu partido sempre sequioso pelo hegemonista, mas alvejado violentamente, fraturado e sem rumo, num quadro de forças visivelmente adversamente polarizado. No início de fevereiro de 2015, a candidatura do PT à presidência da Câmara, com nosso apoio, revelou-se um fiasco e um grave erro.

Somou-se a isso a ideia governamental de um “ajuste fiscal” para retomada do crescimento, o que se colou ao espraiamento à periferia da crise e descenso do ciclo de commodities, a crise local do setor hidro-energético, levando o país afundar numa severa recessão que ameaça juntar três anos de PIB (Produto Interno Bruto) negativo. Razões variadas (e alegadas) somaram a empurrar a Presidenta eleita a um labirinto.

Noutras palavras, a um certo primarismo político da nossa Presidenta seguir-se-ia um isolamento sem precedentes da eclética coalizão governista, inobstante inúmeras críticas vindas de vários setores sobre a condução política, principalmente, e da econômica. Esta última fulminada pelo deslocamento pendular da crise originada em 2007-8 nos países centrais à América Latina.

A repetição farsesca do “só-diretas”

Imposto o afastamento provisório da Presidenta, o PCdoB alertou pública e documentadamente para a marcha golpista, desde maio de 2015. Desdobrou então sua posição tática na ideia de um plebiscito para a decisão, ou não, de antecipação de novas eleições presidenciais. Não eleições “gerais”, como praguejava o trotskismo contrarrevolucionário e correntes políticas utópicas. Apesar dos combates, a cristalização de grandes manifestações de rua revelou maior apoio a um desfecho contra Dilma Rousseff. A influência da campanha solerte da Policia Federa, do Ministério Público Federal, de membros do Supremo Tribunal Federal, da mídia tradicionalmente golpista, vem sendo não só muito poderosa, como inconteste o questionamento internacional (inesperado).

No PT, algumas de suas correntes, sempre metidas a sábias – os que faziam chacota da possibilidade do impeachment -, até agora truncam a proposta do plebiscito, vez por outra alegando até que o seria “capitulação”. Ora, uma farsesca colagem da proposta defendida pelo mesmo PT de não se participar das eleições indiretas, via Colégio Eleitoral em 1985, e orientando que se permanece com a bandeira do “só-diretas”. Aqui, no final, uma derrota tão desoladora quando da votação para a admissibilidade na Câmara de março de 2016: o finado Tancredo Neves derrotou Maluf (480 votos contra 180).

Claro que a proposta do plebiscito – que recebe crescente adesão de variados setores organizados e intelectuais democráticos – representa uma bandeira afirmativa para abordagem das massas populares, ausentes da luta política e desnorteadas coma rápida deterioração e mudança brusca na situação social e política do país. A decisão de não sustentar o governo, mas também de não ir às praças contra Dilma prevaleceu amplamente até sinais de natural exaustão da militância mais ativa e sua miríade aliada.

Evidente assim que, no quadro criado, o “Fora Temer” ou o “Fica Dilma” leva à petrificação por sobre dois resultados de votação seguidos (Câmara e Senado) humilhantes. Terreno frustrado: as derrotas seguidas representam o esgotamento de um ciclo, onde as bases de recomposição do governo Dilma aprecem inócuas.

Alianças pontuais, alvo principal. Compromissos

Repisemos aqui: uma primeira ideia basilar, e lição política decisiva do Leninismo, é que as marchas e contramarchas da luta de classes impõem a necessidade objetiva dos comunistas encetarem acordos e compromissos com seus adversários – por absolutamente óbvio, não só com aliados.

Uma segunda ideia sequencial, acima exposta por Lênin, expressa explicitamente que os comunistas fizeram, fazem e farão “acordos e compromissos”, indireta ou mesmo diretamente, com forças burguesas e outras. Alianças políticas e militares são anteriores a Jesus Cristo, continuam e continuarão a se realizar, escancaradamente ou não. Quem as omite o faz por puro oportunismo, nada mais.

Aliás, alianças passaram a ser uma espécie de modus vivendis da atividade política moderna, de maneira a se tornarem indispensáveis. Outro exemplo incontornável: a presença do banqueiro Henrique Meirelles, como presidente do Banco Central, em dois governos do presidente Lula. Ou ainda, a presença duas vezes na vice-presidência de Lula de José de Alencar, então o maior empresário do ramo têxtil da América Latina. Inobstante, sabemos que predominava originalmente no petismo a ideia (obreirista, demagógica) de que “trabalhador vota em trabalhador”; ou outros tinham como slogan, “PT: diferente que tudo que está aí”.

Aliás, é fundamental recordar: foram Henrique Meirelles, Antônio Palocci, sob Lula, quem deram o tiro mortal da liberalização financeira, bem após Marcílio M. Moreira e Gustavo Franco. Em março de 2005 a abertura irrestrita da conta de capitais do balanço de pagamentos, o símbolo universal do capitalismo arreganhado à financeirização neoliberal, foi sacramentada! O PT não abriu o bico…

Agora, teóricos da socialdemocracia petista – e outros fora do PT -, como o professor André Singer, consideram que o deputado Rodrigo Maia, presidente recém-eleito da Câmara, “cujo perfil sociológico tucano tem a cara dos tempos vigentes, está agora livre para consumar a liberalização”. [1] Para o politólogo Antônio Carlos Queiroz, especializado em análise do parlamento brasileiro, “Rodrigo Maia não é baixo clero. É um quadro liberal, formado. Tem ideologia”. [2]

Ilusão e bobagens. Os dois tergiversam: a liberalização da economia brasileira, comprovadamente, já foi feita pelo governo do presidente Lula; não só isso: os dois governos de Lula desindustrializaram o país, justamente com a política de valorização cambial, deliberada, comandada por Meirelles. E Lula teve como porta-voz o mesmo professor Singer, entre 2003-2007. Queiróz parece ter esquecido que Eduardo Cunha – cujo candidato Rosso, também de Temer, foi derrotado por Maia -, em pouquíssimo tempo, além de aprovar projetos ultrarreacionários e fundamentalistas, pôs na linha de tiro o que generaliza a terceirização, tudo antes de aprovar a abertura do processo de impeachment contra Dilma defendido e operado por burgueses reacionários e neoliberais.

O neoliberalismo é sabidamente fenômeno mundial e da nossa época, e o Brasil nunca entrou na era “pós-neoliberal”. Diz respeito ao processo engendrado de hegemonia do grande capital financeiro em suas diversas formas, assim como corresponde ao padrão de acumulação capitalista imposto pelas políticas fabricadas na atual etapa do imperialismo. Trata-se de empulhação creditar a um presidente X ou Y de uma parte de um parlamento nacional a capacidade de “consumar a liberalização”.

Evidente, por suposto, que Maia e Rosso não são a “mesma coisa”: não poderiam ser, e por isso não somaram a fortalecer uma única candidatura, decisiva para o golpista Temer e todos os setores que querem impor a agenda ultraliberal. A atual quadra política, de longa crise institucional no Brasil, produziu e produzirá fraturas quanto aos interesses de forças econômicas e sociais poderosas e das classes dimanantes daqui e alhures. Não se pode ter dúvidas quanto a nossa capacidade de interferir nisso. Essa é a experiência de acertos na tática do PCdoB – mas erros sempre haverá.

Interessa vivamente para as forças progressistas, democráticas e revolucionárias explorar as mínimas diferenças entre os conservadores, ainda que esse movimento seja apenas uma tentativa, pois, não existe uma tática justa que tenha certificado de garantia que “dará certo”.
Pois bem: ir ao Colégio Eleitoral redundou em José Sarney como presidente, ex-ARENA, partido sustentáculo do fascismo, quem veio a legalizar os partidos comunistas e suspender a Portaria que impedia o livre funcionamento das centrais sindicais. Sarney foi um presidente democrático, que veio depois, no Senado, a ser muito importante na consolidação do primeiro e segundo governo de Lula. Mas foi o PT, parte importante da intelectualidade, trotskistas de vários matizes que se opuseram radicalmente ir ao Colégio Eleitoral.

O que não significa que Maia tome isto como exemplo – claro que não e até porque suas condições e capacidade de operar, e estatura política são inferiores e limitadas. E o que não quer dizer que ele não esteja alinhado com o ideário liberal.

Movimentos aliancistas variadíssimos são imperativos, especialmente quando o quadro concreto de forças está impondo derrotas as correntes revolucionárias, progressistas. Ou quando conquistas estratégicas estão claramente ameaçadas e parcelas imensas das classes trabalhadoras e os setores populares organizados não conseguem mobilizar multidões para darem consequência prática as ações políticas da tática. As massas estão “ariscas” ou desmobilizadas em torno de tal qual líder, partido, qual candidato etc.

Um exemplo distante, não análogo, mas digno de reflexão, em matérias de alianças nesta quadra atual de ofensiva neoliberal – e mesmo neofascista -, pode ser recolhido da decisão do PCP (Partido Comunista Português) em dar apoio à formação do governo do PS português, uma arquirrival desde a Revolução dos Cravos (1974) e transmutado neoliberal. Baseado numa carta de compromissos contra as políticas destrutivas do PSD-CDS, o “compromisso”, inesperado e correto, surpreendeu a todos.

Ora, Engels alertara: a “objetividade” das lutas de classes, que requerem fases, etapas intermediárias e compromissos criados “pela marcha da evolução histórica” são fenômenos que nos recomenda não os saltar, à medida em que são nítidos seus [nossos] objetivos estratégicos ou finais. Mas isso é válido para adeptos do materialismo dialético, não é do alcance à esquerda que se ausenta, a esquerda caça-fantasmas.

Cretinismo jornalístico

Provavelmente atacado pela síndrome da provocação, um jornalista petista, a propósito da recente batalha das eleições da Câmara teve o cinismo de acusar o PCdoB de “cretinismo parlamentar”, por votar, no segundo turno, após ter lançado candidato, no deputado Rodrigo Maia. Como o dito é vinculado a uma das alas do PT, o chilique é apenas aparentemente gratuito. Sabe-se, além, que o esquerdismo pequeno-burguês por aí afora pareceu incomodado com as posições arrojadas e na frente das batalhas que manifestou o PCdoB.

Ocorre que esse articulista e blogueiro, sequer sabe que “cretinismo parlamentar”, conforme Marx e Lênin, diz respeito a visão e a prática de parlamentares que subordinam os interesses do conjunto de seu partido, da nação e dos trabalhadores aos seus interesses pessoais e a sua atividade parlamentar. Noutras palavras, os “cretinos” consideravam que o sistema parlamentar é superior, e a atividade parlamentar a única e principal forma de luta política em todas as condições. O que todos sabem não é de nenhuma forma as características de um partido como o PCdoB. Basta olhar o protagonismo da UNE e da CTB, organizações de massas dirigidas pelos comunistas em alianças – sempre! – com outras forças e correntes políticas.

O dito quis ainda inventar uma alternativa – que deveria ser seguida pelos seus conselhos políticos -, aliançando PSOL/PMDB/PT/PCdoB numa mesma chapa à presidência, uma charlatanice, completamente inviabilizada pelo rechaço imediato do PSOL e da ala do PMDB de Castro; comprovada pelo voto dele – como votou no segundo turno – no deputado do chamado “centrão”!

Coquetel Molotov

Reflitamos finalmente. Tem gente que fica arrepiada quando ouve falar de Viatcheslav Molotov.

Molotov era um terrível traidor e conciliador burguês quando em 1937 assinou o pacto com o nazista Joachim Ribbentrop? Absolutamente nada disso: os comunistas soviéticos e o chanceler de Stalin tinham convicção que era necessário ganhar tempo para conduzir a industrialização para a guerra. Tratava-se de impedir um ataque inesperado de Hitler, vez que a situação de despreparo das defesas militares da URSS exigia ganhar tempo. Reclamava-se a urgente neutralização temporária de uma ofensiva nazista que se anunciava devastadora.

Assim, Molotov fez, claramente, acordo – “compromisso” político e militar – com Ribbentrop, o ministro das relações exteriores de Hitler e sabe-se o resto. Mas recorde-se ainda que, a vitória na 2ª Guerra Mundial contra o nazi-fascismo exigiu “acordos” inigualável, até hoje, materializado numa aliança integral entre as lideranças Stalin e Roosevelt e Churchill, dois eméritos direitistas e liberais burgueses.

Evidente que não se trata de analogia histórica, mas de se constatar sobre a necessidade de em “quais circunstâncias” táticas e estratégicas (Lênin) os comunistas se posicionam para empreender “certos” compromissos. De não se acovardar em levar à prática valiosas lições da história da luta de classes.

No caso do PCdoB e sua trajetória gloriosa, há “compromissos” sempre pensando em como, em situações de defensiva política, pode-se abrir frestas, paralisar ataques demolidores dos inimigos do povo, da nação e da democracia. Democracia que exige a imperiosa presença dos lutadores pelo Programa Socialista no Brasil.

*Duas táticas. E o esquerdismo espírito da utopia

NOTAS

[1]Ver:http://www1.folha.uol.com.br/colunas/andresinger/2016/07/1792311-amargo-regresso.shtml

[2]Ver:http://www.brasil247.com/pt/247/brasil/244530/Diretor-do-Diap-diz-que-Maia-dever%C3%A1-radicalizar-o-neoliberalismo.htm

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