“Campo Grande”, difícil equilíbrio

Drama familiar da cineasta carioca Sandra Kogut mostra outro lado do Rio de Janeiro ao tratar de impasses de mulheres de diferentes classes sociais.

Como numa crônica, o espectador é pego pelo inusitado neste “Campo Grande”. Terá de esperar cada sequência estruturada com extrema habilidade pela cineasta carioca Sandra Kogut (Mutum, 2007) para captar as nuances de sua narrativa. Até chegar ao centro da história a envolver mistério, suspense e drama familiar de duas mulheres tragadas por seus impasses. Ambas têm em comum a dificuldade de cuidar de seus filhos.

E se algum dia trafegaram pelo mesmo espaço, uma delas nem se lembra da outra. O que as une são os dois filhos de uma, Igor (Igor Manoel) e Rayane (Rayane do Amaral) largados à porta da outra, Regina (Carla Ribas), num bairro classe média. Fato comum em qualquer megalópole, onde elas conduzem suas vidas sem companheiro algum, tendo de tomar decisões que influem nas buscas de uma e outra, em ações paralelas.

Se Regina, às voltas com seu divórcio, teme que a filha Lila (Júlia Bernat) vá viver com o pai, os pequenos Igor e Rayane ficam aflitos à espera do retorno da mãe. Contudo, estas tipificações de trama e narrativa só se completam em seu terceiro vértice: o Rio de Janeiro, megalópole de 6.47 milhões de habitantes (IBGE, 2015), onde Regina conduz as crianças numa via crucis emaranhada de falsas pistas para encontrar a mãe delas.

Regina e Lila se veem ameaçadas

Tais obstáculos assumem esta configuração devido a forma como Kogut e seus corroteiristas Felipe Scholl e Mônica Almeida estruturam a narrativa, ao partir de um núcleo, caso de Regina e Lila, que se vê ameaçado pela súbita chegada das crianças, para abranger outro ainda indefinido. O que agudiza os conflitos entre elas, tendendo Regina a se livrar de Igor e Rayane, enquanto a filha se opõe, dizendo que ela “não sabe cuidar dos outros”, numa alusão a si mesma.

Com esta construção, Kogut monta o longo arco dramático da segunda e terceira parte do filme, no qual Regina catalisa a ação com Igor, em desenfreada busca à maneira do Theo Angelopoulos (1936/2012) de “Paisagem na Neblina” (1988), em que a adolescente e seu irmão pequeno saem à procura do pai na Suíça, e do Walter Salles de “Central do Brasil” (1998), no qual a ex-professora Dora (Fernanda Montenegro) faz longa viagem ao Nordeste para o garoto Josué (Vinicius Torres) rever a família.

De agente passiva no início, Regina se torna ativa ao conduzir as ações, transformando a narrativa em sua própria história, embora continue sendo o vértice de outra mãe. São mutações a explicitar suas agruras enquanto mulher em situação limite, na megalópole cheia de obstáculos e armadilhas materializados em estranhos, outdoors, tapumes, calçadas, barracas, lojas, bares, ônibus lotados e ruas e avenidas congestionadas.

Regina não é Penélope

Kogut usa esta parafernália urbana, com a qual os cariocas convivem em seu cotidiano, para matizar o estado psicológico de Regina. Principalmente ao tentar se localizar em meio ao caos dos prédios e unidades esportivas em construção para as Olímpiadas do Rio, época de rodagem do filme, e de outros edifícios a obstruir o trânsito e as calçadas. O que aumenta a aflição dela, dando ideia de labirintos, numa viagem de Ulisses às avessas, pois ela não é mitológica, mas faz a sua Odisseia.

Não é uma busca qualquer, os fios aos quais se apega se bifurcam em várias trilhas até chegar a Campo Grande, gigantesco bairro com 330 mil moradores, que o faz o maior entre outros 160 do Rio (IBGE, 2010). As pistas desembocam em terrenos baldios, ruas esburacadas e tomadas por lixo e esgoto, abandonados prédios em construção, ou ocupados por famílias sem teto. Universo diverso do seu, pois ali a administração pública relega os moradores à matroca, descurando de suas atribuições.

Desta forma, Kogut muda o foco dos filmes nacionais concentrados nos aglomerados habitados pelos afrodescendentes (e não só eles), como “Cidade de Deus”(Fernando Meirelles, 2002) e “Tropa de Elite” (José Padilha, 2008), para o proletariado expulso para a periferia, carente de infraestrutura. Igualmente confinados em caixas, símbolos do apartheid não declarado, ele confirma a tendência da burguesia nativa em mantê-los como mão de obra barata, sem inclusão social, para preservar seus lucros.

Kogut não banaliza a história

Neste caleidoscópio sócio-urbano, tendo o Rio como personagem e cenário, Kogut leva Regina a se reafirmar a partir da realidade, sem psicologismos, ainda que em algumas sequências a mostre em situações introspectivas. A chegada de Igor e Rayane, longe de ser empecilho, leva-a ao percurso de descoberta do outro, ao se envolver com problemas diferentes aos seus, enquanto ser capaz de solidariedade.

Contudo é no desfecho que Kogut atesta o quanto a arquitetura do roteiro pode tornar uma narrativa densa, multiplicando as possibilidades da trama, sem usar recursos que banalize a história. Se Regina é o personagem visível e a mãe de Igor e Rayane invisível, elas não deixam de se amparar mutuamente, formando indiretamente um díptico.

Campo Grande. Drama. Brasil/Rio de Janeiro. 2015.108 minutos. Edição: Sérgio Mekler. Fotografia: Ivo Lopes Araújo. Roteiro: Sandra Kogut/Felipe Scholl/Mônica Almeida. Direção: Sandra Kogut. Elenco: Carla Ribas, Igor Manuel, Rayane do Amaral, Júlia Bernat, Mary de Paula.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor