“Agnus Dei”, razões humanas

Filme da cineasta luxemburguesa Anne Fontaine contrapõe fé à razão em conflituoso encontro de médica comunista e madre superiora na II Guerra.

Agnus Dei é mais do que o título deste drama-político da cineasta luxemburguesa Anne Fontaine (Coco Antes de Chanel, 2009). Ela o usa para configurar a decisão da Madre Superiora do Convento das Beneditinas polonesas (Agata Kuleska) de não expor sete jovens freiras à execração pública. Mas também para fazê-las aceitar o sacrifício de se submeterem à sua ordem, devido ao voto de castidade, por achar que atenderia a Deus.

Fontaine denuncia, assim, o fundamentalismo da Madre, ao repetir Abraão, que, para provar sua fé em Deus, decidiu sacrificar o próprio filho. E dá à sua intenção o mesmo significado do sacrifício de Jesus Cristo, que salva a humanidade ao resgatá-la do pecado original. Então, Agnus Dei, o Cordeiro de Deus, em grego, citado por João Batista, no Novo Testamento (Evangelho de João, capítulo 1, versículo 29), ganha pleno sentido.

Este dilema sustenta a narrativa construída por Fontaine a partir de fatos reais ocorridos em dezembro de 1945, numa cidadezinha polonesa. Entre os combates, soldados alemães e russos, ao que consta, teriam estuprado várias mulheres e, inclusive, as sete jovens freiras do Convento Beneditino. Daí o dilema da Madre ao manter a gravidez das freiras em segredo.

Bealieu é comunista, a Madre, católica

Entretanto, o interesse de Fontaine está na conflituosa relação da médica francesa Mathilde Bealieu (Lou de Laàge) com a Madre polonesa, pois opõe o racionalismo, ética médica e humanismo de uma, à fé e rigidez de outra. Concepções a se agudizar, porquanto Bealieu era comunista militante, de origem operária, e a Madre serva de Deus. Mas elas acabam convivendo.

Jovem, Bealieu integrava a equipe de médicos da Cruz Vermelha francesa, que, em dezembro de 1945, cuidava dos feridos para repatriá-los para a França. Resquícios da invasão da Polônia, em 01/09/1939, pelas tropas de Adolf Hitler (1889/1945), dando início à II Guerra Mundial (1939/1945). Ela sofre ainda seus efeitos numa ida ao Convento Beneditino, ao ser cercada por alguns soldados russos, mas só escapa devido à intervenção do coronel russo que os afasta rispidamente.

O quadro encontrado por ela no convento segue os preceitos beneditinos e o exemplo de Abraão. A Madre insiste em levar as freiras grávidas ao sacrifício, numa aplicação do Agnus Dei, sem levar em conta que o próprio Evangelho de João diz que Deus perdoou Abraão, não exigindo dele o sacrifício do filho. A áspera discussão entre elas sintetiza isto. Bealieu pede à Madre para cuidar da fé, pois a ela interessava a vida.

Freiras se sacrificariam em obediência ao voto

Através da dialética razão/fé, Fontaine se concentra nas imposições religiosas da castidade e no risco que as freiras grávidas correm se não forem assistidas a tempo. O equilíbrio surge no apoio de Soror Maria (Agata Buzek), que entrou para o convento depois de experiência amorosa. Ela faz Bealieu entender a seriedade do voto e dos preceitos, e como as jovens freiras se sacrificariam em obediência a eles.

Neste devoto universo, a jovem comunista em vez condená-lo usa a racionalidade. Engenhosa, ela se aproxima da Madre, da jovem freira Ludwica (Helena Sukecka) que decide cuidar do filho e de outra disposta a evadir-se do convento. Mas também descobre, para seu horror, o quanto a Madre se entregara ao intento de Abraão. Contudo a narrativa deixa de lado a racionalidade e expõe a natureza humana, em sua radicalidade.

Fontaine une montagem contraposta, suspense e terror na sequência em que Ludwica sai desesperada à procura da Madre, em meio à floresta e montes e montes de nevel, para ter seu filho de volta e não a encontra. O corte seco, revela a capacidade de a Madre cumprir seu voto, numa tomada em que se vê apenas o suposto local. É uma das sequências mais chocantes do cinema e elucidativa construção da fé e do caráter da disfunção psicológica, completada com a Madre na cama em total delírio.

Clima do filme mostra derrisão

Em “Agnus Dei”, Fontaine alterna sua narrativa em sequências no Hospital da Cruz Vermelha francesa, no Convento Beneditino e na relação de Bealieu com o médico judeu Samuel Lehaman (Vicent Macaigne), sem perder o eixo central. E, sobretudo, mantém a atmosfera de derrisão trazida pelos reflexos da guerra e o temor das freiras grávidas de serem punidas em razão das mudanças físicas e psicológicas às vésperas do parto.

Neste filme cujo olhar é essencialmente feminino, Fontaine muda o modo de o cinema ocidental, principalmente hollywoodiano, tratar os comunistas com estereótipos. Ao invés de vilã, bruta, irracional, a jovem médica comunista, Bealieu, é inteligente, arguta, solidária, competente. Se entrega à assistência às freiras grávidas não só como médica, mas como mulher, disposta a superar os obstáculos, apontando boas soluções. De forma racional e humana, ela encontra saída para o impasse no convento.

Agnus Dei. (Les Innocentes) Drama. França/Polônia. 2016. 115 minutos. Montagem: Annette Dutertre. Fotografia: Caroline Champetier. Roteiro: Anne Fontaine,/Alice Vial/Pascal Bonitzer/Sabrina B. Karine. Direção: Anne Fontaine. Elenco: Lou de Laàge, Vincent Macaigne, Agata Buzek.

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