A minha recusa a voltar a conviver com o "dona, tem pão velho?"

As crianças, após o jantar, viam TV. Fazia uma temperatura agradável, mas para nós, nordestinos, recém-chegados a Belo Horizonte, era frio. A campainha tocou. Atendi.

“Dona, tem pão velho?”

Voz de criança. Era a primeira vez na vida que ouvia aquilo. Demorei a processar a indagação. Espantada:

“Pra quê?”

“Pra comer!”

“Espera. Vou descer.”

O porteiro falava alterado. Eram duas crianças, a maior de uns 8 anos e a menor tendo por volta de 6 anos. Vendo-me com um saco de pão, o porteiro, imbuído da maior autoridade dos pequenos poderes: “A senhora não pode dar pão pra esse povo que pede aqui na rua! Tenho ordem do síndico pra não deixar”. Dei o calado por resposta e entreguei o saquinho com dois pães para o menino maior, e ambos saíram correndo. Encarei o porteiro: “Comunique ao síndico, que sempre que alguém pedir comida em minha casa, se eu tiver, darei!” No dia seguinte, recebi uma advertência por escrito, na qual constava a resolução dos moradores, definindo a proibição de dar esmolas na portaria para não atrair gente que “colocasse o prédio em risco”.

Era 1988. Rua Oscar Trompowski, no Gutierrez, bairro de classe média tida como alta. Morei lá mais de um ano, e nunca mais minha campainha foi tocada por gente pedindo comida. Depois que saí de lá, soube que deram um spray de pimenta para o porteiro afugentar pedintes!

Mudei-me para a Cidade Jardim, na zona sul de BH. Prédio de apenas três andares, dois apartamentos por andar. Sem porteiro. Na rua Conde de Linhares, onde morei de março de 1989 a junho de 2014. Lá descobri a dura peregrinação cotidiana de adultos e crianças em busca de pão velho ao anoitecer.

Minha filharada aprendeu a comer pão guardando o pedaço que não queria mais para o “menino do pão velho” – na verdade, uma legião deles, que durante anos tocavam a nossa campainha, tão presentes em nossas vidas que viraram dizeres pedagógicos contra o desperdício e até piadas.

Um dia, ouvi Débora, pré-adolescente, dizer: “Isso, estraga Arthur! Olho maior do que a barriga. Enche bem o prato e joga no lixo! Mamãe se mata de trabalhar, e tu jogando comida fora. Quer virar ‘menino do pão velho?’”

Eram tão onipresentes que em Minas, ao se atender a campainha e se reconhecer a voz de uma pessoa amiga, ainda se diz, rindo: “Tem pão velho, não!”

Não sei dizer exatamente quando começou a escassear até praticamente desaparecer a legião de meninos do pão velho, mas não tenho dúvidas de que foi após o governo Lula instituir o Bolsa Família, como bem lembrava Valdete, idealizadora das Meninas de Sinhá, com quem aprendi muito.

Valdete repetia como um mantra: “Meninos na rua agora são poucos, quase nada comparando com antes de Lula: tudo na escola! Menino do pão velho? Virou coisa do passado! Milagre de Lula com o Bolsa Família! Lá em casa, a gente está comendo pão velho à tripa forra. Pudim, doce, na torta de sardinha, bolo salgado de pão com legumes… e almôndegas com pão velho, melhor não há!” Ê, Valdete, saudade! (“‘Tá Caindo Fulô…’ – Memórias de Valdete e das Meninas de Sinhá”, 22.1.2014).

É a legião de “meninos do pão velho” que o governo do interino quer resgatar no Brasil com ataques ao Bolsa Família, com discursos que até tenho vergonha de repetir, mesmo com aspas; e, agora, com a recusa de honrar o reajuste de apenas 9% concedido pela presidente Dilma Rousseff! Coisa de gente sem repertório humanitário. Indago outra vez: “Por que o Bolsa Família desperta tanto ódio de classe?” (O TEMPO, 11.6.2013). Nem preciso gastar mais meu latim, mas é ódio de classe de quem acha que o Brasil não deve ser um país cuidador de seu povo.

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