“Maravilhoso Boccaccio”, males dos tempos

Em livre adaptação de “Decamerão”, Irmãos Taviani tornam histórias de Boccaccio reflexos da condição da mulher e dos costumes do século XIV.

Em livre adaptação de “Decamerão”, Irmãos Taviani tornam histórias de Boccaccio reflexos da condição da mulher e dos costumes do século XIV

O olhar a fixar as imagens em tons ouro brotadas dos painéis de Giotto (1267/1337), neste “Maravilhoso Boccaccio”, mostram a preocupação dos Irmãos Paolo (1929) e Vittorio (1931) Taviani (A Noite de São Lourenço, 1982) em traduzir o clima da pré-renascença italiana. Mas a fotografia de Simone Zampagni também registra os efeitos da peste bubônica em Florença, na Toscana, centro da Itália, onde fez 100 mil vítimas.

São imagens a confirmar a pandemia através de milhares de corpos amontoados pelas ruas ao lado de porcos em agonia. Os Taviani, porém, não buscam o horror, ele está nas 100 novelas e contos do florentino Giovanni Boccaccio (1313/1375) de sua obra “Decamerão”, centrada na ética, moral e costumes do século XIV, sob domínio do Vaticano.

Embora sigam a estrutura original do livro, eles a dividem em dois núcleos: o do grupo de narradores e o da peste em si. O primeiro se concentra nas sete moças e três rapazes de ricas famílias florentinas, que conduzem e ligam os entrechos e o segundo nas consequências da peste que ceifou 75 milhões de europeus em 1348.

Histórias de amor e de cruéis punições

Esses jovens criam uma espécie de comunidade que, ao sentir a morte, decidem usufruir a vida, enquanto ela não chega. E implantam um código de conduta, o trabalho conjunto e a proibição de encontros de casais, para não frustrar quem não tem parceiro. Eles passam os dias a cozinhar, passear e a contar as seis histórias mantidas no filme pelos Taviani. Usam para isso comunicação verbal para criar universos ficcionais, que estimulam sua criatividade em meio à pandemia.

Neste entrelaçar afloram a interação, o conhecer, o dividir, como na sequência da preparação do pão, da descoberta do amor entre duas jovens, e principalmente no tecer das histórias, como se os Taviani quisessem fixar a redescoberta do outro. E então superar as diferenças ou denunciar hipocrisia, traição, vingança e inveja. Numa delas, o duque Tancredi pune a filha Chismunda (Kasia Smutntaki) por ter se apaixonado pelo escultor Guiscardo (Michele Riondini) e arranca o coração do amado e lhe entrega.

Noutra história, o cavaleiro Federico se apaixona pela bela e casada Giovanna (Jasmine Trinca), mãe de um garoto, e perde toda sua riqueza. Resta-lhe apenas a torre onde mora e o treinado falcão. Quando, enfim, se reaproximam, são submetidos a um impasse. Numa emblemática sequência, ele lhe serve seu bem mais precioso, mas ela, ao descobrir, fica em pânico.

Histórias beiram o horror de Poe

As duas histórias beiram o horror de Edgar Alan Poe (1809/1849), em “Metzengerstein”, do livro “Histórias Extraordinárias”, no qual a condessa (Jane Fonda), apegada ao cavalo negro, termina num incêndio. Este conto, mais “Tony Damit” e “Willian Wilson”, compõem o filme homônimo (1968), respectivamente dirigidos por Roger Vadim (1928/2000), Federico Fellini (1920/1993) e Louis Malle (1932/1995). Os Taviani, contudo, se valem da ironia ao compor os casos da freira Lisabetta (Carolina Crescenti) e da madre.

Fechado numa elevação, o convento reflete o auge de poder da Igreja Católica, com seus dogmas, clausura e poder. Lisabetta, jovem, mantém uma relação às escondidas com o amado. Descoberta, as freiras chamam a madre superiora, que está na cama com um padre. Por hipocrisia, ela se põe a exigir correção da freira, mas as outras vêm em sua cabeça em vez do véu a ceroula do padre. Em sua defesa, ela diz: “Sou culpada porque foi assim que Nosso Senhor nos fez. Espirito e carne, fé e pecado”.

Os Taviani não se furtam assim da visão do direito da mulher ao prazer, iguais a Pier Paolo Pasolini (1922/1975), em sua versão de oito histórias de “Decamerão”(1971). Ele dota-as de humor, crítica de costumes e, a exemplo dos Taviani, de horror. Sua condenação à hipocrisia do Vaticano, contrasta com a de Boccaccio, cujas personagens veem as mulheres como fracas, afeitas à procriação e dependentes do pai ou do marido.

Pasolini toma partido da mulher

Em duas histórias ele mostra outra visão da mulher: I – duas jovens freiras compartilham o mesmo amante. Para não serem denunciadas à madre, elas o dividem com outras freiras, até a madre descobrir e reservar um horário para si; II – Mais ardilosa é a garota que usa o amado para fazer os pais o aceitarem e são flagrados na cama. E na terceira, a jovem Isabela após ser vista pelos três irmãos no ato com o empregado da família, o encontra depois enterrado no mato. Ela corta a cabeça dele e a enterra no vaso de flores à sua cabeceira. É a paixão mesclada à morbidez.

Os Taviani e Pasolini não estão sós nesta visão contemporânea do século XIV. Em 1962, nos episódios de Boccaccio 70, Federico Fellini, As Tentações do Dr. Antonio, Luchino Visconti (1906/1976), O Trabalho, Mário Monicelli (1915/2010), Renzo & Luciana, e Vittorio de Sica (1901/1974), A Rifa, já o tratavam com o olhar satírico e mordaz, de quem vê no conservadorismo motivo de riso e galhofa.

Maravilhoso Boccaccio. (Maraviglioso Boccaccio). Drama. Itália. 2015. 120 minutos. Montagem: Roberto Perpignani. Música: Giuliano Taviani/Carmelo Travia. Fotografia: Sminone Zampagni. Roteiro/direção: Paolo e Vittorio Taviani. Elenco: Jasmine Trinca, Michele Riodini, Carolina Crescentini, Kim Rossi Stuart.

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