Abaixo a inteligência! O brado dos novos falangistas

O episódio é bem conhecido. Corria o ano de 1936 e o salão de honra da Universidade de Salamanca estava lotado. Aglomeravam-se ali, entre estudantes e professores, os falangistas – os fascistas espanhóis – com suas camisas azuis. Dentre as autoridades, a esposa do general Francisco Franco, o ditador.

Em dado momento, um dos oradores, Francisco Maldonado, lançou um virulento ataque contra a Catalunha e o País Basco, chamando-os de “anti-Espanha e de tumores no sadio corpo da nação”. Maldonado, em tom de ameaça, afirmou que “o fascismo redentor da Espanha saberá como exterminá-los, cortando na própria carne, como um decidido cirurgião, livre de falsos sentimentalismos”.

Ao fim da fala de Maldonado alguém da plateia gritou o lema da Falange: “Viva la muerte!”, ao que o general falangista Millán-Astray, presente naquele momento, respondeu com “Espanha!”. Um grupo de falangistas invadiu o salão e fez a saudação oficial – o braço direito ao alto – ao retrato de Franco pendurado em uma parede.

Embora haja várias reconstruções do que se seguiu, a mais corrente delas dá conta da reação de Miguel de Unamuno, reitor da Universidade. Personagem contraditório, de errática posição política até então, Unamuno havia sido um ativista contra a ditadura protofascista de Primo de Rivera, que governou a Espanha entre 1923 e 1930. Dom Miguel havia apoiado a República de 1931, mas era, naquele então, um dos poucos grandes intelectuais a apoiar o levante militar comandado por Franco, que instaurava o fascismo no país.

Miguel de Unamuno, indignado com o que ouvira, dirigiu-se então ao general Astray e disse-lhe que não permitiria que bascos e catalães fossem ofendidos na sua presença. Disse ainda não aceitar que, em plena casa da sabedoria, viessem aclamar a morte com “um brado necrófilo e insensato”. Afirmou que aquele desvario se devia ao fato do general ser “um aleijado destituído da grandeza de Cervantes” (Astray era um mutilado de guerra, assim como o grande escritor), que queria compensar-se da sua desgraça provocando mutilações ao seu redor.

Nessa hora, um Astray furioso bradou “Abaixo a inteligência! Viva a morte”. Outra versão diz que as palavras exatas foram “Morra a intelectualidade traidora! Viva a morte!”. De qualquer forma, Unamuno não se intimidou e, voltando-se para ele, disse: “Este é o templo da inteligência e eu sou seu sumo sacerdote! Vós estais profanando este sagrado recinto. Tenho sempre sido, digam o que digam, um profeta de meu próprio país. Vencereis porque tendes sobrada força bruta. Mas não convencereis porque para convencer há que persuadir. E para persuadir lhes falta algo que não tendes: razão e direito.”

Daquele dia até o último do ano de 1936 Unamuno foi posto em prisão domiciliar. Os fascistas não tiveram coragem de matá-lo, embora haja quem o diga que assim o fizeram. A imensa repercussão do recente assassinato do poeta Federico Garcia Lorca deve tê-los detido. Mas em 31 de dezembro do mesmo ano Miguel de Unamuno morreu em sua casa.

O episódio remete ao Brasil de hoje, oito décadas depois. Como a confirmar a justeza de Hegel, com o acréscimo de Marx em “O 18 Brumário”, os personagens se repetem. A farsa que é o governo ilegítimo do temeroso extinguiu o Ministério da Cultura. É como se um Maldonado, um Astray e outros falangistas gritassem alto “Abaixo a inteligência!”. Candidatos a encarnar esses personagens não faltam, desde um Feliciano até uma Regina “eu tenho medo” Duarte. São neofalangistas, são herdeiros daquele mesmo franquismo que golpeou tão duramente a Espanha que ainda hoje a ferida teima em não cicatrizar.

Por outro lado, são muito mais numerosos os que, como Dom Miguel de Unamuno, erguem suas vozes e dizem “Alto lá! Aqui é o templo da sabedoria, aqui é a casa da cultura”. Como Dom Miguel são muito mais numerosos os que, em defesa da cultura do povo brasileiro e em defesa da democracia, erguem suas vozes e denunciam a farsa que é este governo provisório e ilegítimo, um morto-vivo que cambaleia sustentado pela força bruta alojada no parlamento, em setores do judiciário e financiado pelos grandes industriais que encamparam o golpe.

A maior evidência da farsa está na recusa de meia dúzia de mulheres em emprestar o seu nome para legitimar o absurdo. Seis mulheres disseram não ao convite para dirigir a Secretaria da Cultura, apêndice de outro inimigo da inteligência e da cultura, o Mendoncinha. Meia dúzia de mulheres, sondadas por uma outra que não se envergonha do papel de “menina de recados”, recusaram-se à tarefa de coveiras da cultura.

A repercussão da farsa, a reação que alçou voos para fora do Brasil, nos faz acreditar, como dom Miguel, que os impostores podem até vencer, mas não convencerão porque para isso precisarão da persuasão. Dom Miguel foi profeta para além do seu país, pois para persuadir, como ele afirmou, é necessário ter a razão e o direito, e isso é algo que os impostores não têm. O grito de “Abaixo a inteligência!” lançado pelo governo Temer não encontrará quem o secunde.

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