“Cemitério do Esplendor”, males dos deuses

A persistência do passado e a profanação de área sagrada são mesclados pelo cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul para tratar do presente.

A mansidão com que as jovens deusas gêmeas do Laos ocupam a mesa em que a voluntária deficiente física Jen (Jenjira Pongpas) faz seu lanche, neste “Cemitério do Esplendor”, descontrói o modo como o espectador ocidental se acostumou a este tipo de sequência. O cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul a destituiu dos efeitos de sons, luzes e fumaça hollywoodianos que normalmente antecipam este tipo de aparição, ao optar pelo simples enigma.

A sequência é crucial para se entender o que se passa no hospital militar, onde diversos soldados estão acometidos pela doença do sono. E as deusas do Laos irão elucidar o que os médicos não conseguem diagnosticar, inclusive com a ajuda da vidente Keng (Banlop Lomnoi). Entretanto, para o desconforto de Jen, que ajuda a recuperar o Soldado (Jarinpattra Rueangram), elas fazem elucidativo elo entre os enfermos e os milenares reinos tailandeses.

Deste modo, Weerasethaku traça sutil paralelo entre sua trama e a dos filmes de terror, onde, como ocorre em “Cemitério Maldito” (1989), Mary Lambert ao tratar da violação do cemitério de animais, desperta represadas superstições. Enquanto ele ironiza tais “espetáculos” nas sequências em que Jen e o Soldado assistem a um trash-horror, em que predominam violência e sangue. E faz o espectador entender os nefastos efeitos da ação humana no legado de seus antepassados.

Vidente Keng não decifrou o enigma

O Exército tailandês, ao decidir construir o hospital numa cidadezinha do interior, negligenciou a crença budista nas sucessivas reencarnações e na importância histórica da área escolhida. Os soldados acometidos pela doença do sono acabaram transformados em guerreiros dos reinos rivais em sangrento combate. Explicação a escapar da vidência, pois Keng, embora configure as ações passadas dos enfermos, não detecta o revelado pelas deusas do Laos. Mostrando suas claras deficiências.

A exemplo de “Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas” (2010), que trata de reencarnações, Weerasethaku não faz proselitismo da crendice, apenas vê a vidência como reflexo da tentativa de o ser humano entender sua subconsciente relação com o passado e situá-la no presente. Jen e Keng, na longa sequência em que transitam por castelos e recantos naturais, reencenam situações do longínquo passado e projetam suas revivências.

São sequências em que as duas atrizes se valem de mímica e movimentos corporais para, através de diálogos e narrações, projetar o vivenciado. O espectador deve aceitar este abstrato jogo proposto por Weerasethaku para captar o significado do que elas constroem. Foge ao realismo, ao conhecido pelas mentes centradas no concreto, no existente, para dar conta de seu tema: a conflituosa relação do homem com seus enigmas, porquanto a ciência ainda não os alcança para elucidá-los.

Soldado prefere ser vendedor ambulante

Contudo o universo de Weerasethaku assemelha-se ao do russo Andrei Tarkovsky (1932/1986), em “Solaris” (1972) e Stalker (1979), nos quais projeta suas inquietações transcendentais, sem negligenciar as agruras do mundo real, ficando entre a ciência e a metafísica. Não lhe escapam as preocupações do Soldado ao revelar a Jen, durante o almoço num restaurante, que o Exército não lhe oferece futuro, pois passa o dia a limpar os carros dos generais. Prefere viver como vendedor ambulante.

A própria Jen tem suas preocupações com o companheiro estadunidense e consigo por se deslocar com sacrifício. Ainda assim, ela se divide entre o hospital e sua casa. Em ação diversa, Keng insiste em decifrar a origem dos males a acometer os soldados, se valendo da vidência para ajudar os médicos a tratá-los. Ainda que as deusas do Laos “revelem” a suposta causa sob o ponto de vista metafísico, para ela a revelação é insuficiente pois a ciência precisa de evidências para curá-los.

Não só isto faz parte do árduo cotidiano do hospital. O médico Prasan por não ter remédio para doar ao paciente, lhe diz que o hospital militar não está em condições de tratá-lo. Então lhe dá um que apenas alivia a dor, sem curar a doença. Situação precária enfrentada por outros enfermos. Ali não são tratados apenas os soldados, mas também a população carente. Ao não diferenciar Jen, Keng, o Soldado, o paciente e Prasan, Weerasethaku os transformam no microcosmo de seu próprio país.

Filme mescla o real e o transcendente

Como se vê, a dualidade imposta pelas opções dramatúrgicas de Weerasethaku evita que seu filme oscile entre a metafísica e o materialismo em si. Daí a mescla de ambos, em sequências que mostram a influência religiosa principalmente em Jen e em Keng, mas também a real situação enfrentada pelo hospital militar. A solução buscada pela direção da instituição centra-se na vidência e Jen, mas aparentemente não negligência a das Deusas do Laos. Mostra, desta maneira, a convivência entre dois campos, ambos a depender da ciência para elucidar a verdade.

Cemitério do Esplendor. (Rak ti Khon Kaen). Drama. Tailândia/Reino Unido/França/Alemanha/Malásia/ Coréia do Sul/México/EUA/ Noruega. 2015. 122 minutos. Editor: Lee Chatametikool. Fotografia: Diego Garcia. Roteiro/direção: Apichatpong Weerasethakul. Elenco: Jenjira Pongpas, Banlop Lomnoi, Jarinpattra Rueangram;

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