Os santistas e os vice-campeões

O Santos bicampeão paulista não é nem sombra dos esquadrões do passado. Mas jogou como time de respeito. E a torcida mostrou que é diferente. Deu um espetáculo à parte e provou que futebol não precisa ser sinônimo de guerra. É preciso ter graça para qu

Domingo, 6 de maio de 2007. Um dia épico, com contornos de grande decisão. Morumbi lotado, torcida em festa, um sol brilhante achou espaço entre as poucas nuvens de chumbo da capital paulista para cobrir com luz e calor o evento e tudo que ele prometia. O branco, a linda cor santista predominante, reinava absoluto. Tudo combinou para que nós, santistas, noventa e poucos minutos depois comemorássemos o bi paulista com pompa e circunstância. E eu, no dia seguinte, por regras da casa, nem pude ir trabalhar com a camisa do time do meu coração. Detalhe: trabalho em São Paulo, um lugar cheio de corintianos, palmeirenses e são-paulinos que guardam um desprezo velado pelo futebol da baixada santista. Foram todos vice-campeões — secaram tanto o Santos, torcendo para o São Caetano, que até poeira levantava do gramado. Era a torcida “Fiel Mancha Independente”. 



O semblante de todos era indescritível. Muitos nem chegavam perto. E olha que eu não sou um santista cri-cri, corneteiro, que adora lembrar do maior time do universo em todos os tempos — o Santos dos anos 60, um esquadrão que não vi jogar, diga-se. Mas senti, nesta conquista de domingo, um orgulho do meu clube como há muito não sentia. E as torcidas adversárias viam isso nos santistas da nova e da velha gerações. Sou da geração santista dos anos 80 e 90, quando só havia vacas magras lá pelos lados da Vila Belmiro. Quando comecei a torcer efetivamente para o Santos, corria o ano de 1978. A gente ouvia Chico Buarque, Gilberto Gil e Milton Nascimento à exaustão. Eu morava na jovem, bela, formosa e gloriosa Maringá (que faz 60 anos amanhã, dia 10), Noroeste do Paraná, cidade que comemorava o título paranaense de 1977 conquistado pelo saudoso Grêmio local. (Alô, Paranavaí: parabéns pelo título estadual deste ano em cima do meu Paraná Clube.)


 


Viva lembrança


 


O feito do Grêmio em 1977 — assim como o do Paranavaí, 30 anos depois — foi grandioso para um clube do interior — de cores idênticas às do Santos —, que sapecou o badalado Coritiba na final em pleno estádio Couto Pereira, na capital paranaense. Em 1978, foi a vez de me deleitar com o título paulista conquistado pelos famosos “meninos da Vila”, o “santástico, o show da Vila”. Eram tempos difíceis, eu entrando na adolescência com a cara e a coragem, sem dinheiro no bolso e sem parentes importantes. Foi bacana viver tudo aquilo ao mesmo tempo. O Brasil lá fora se arrastava: a ditadura militar entrava em seu final melancólico. Havia ainda muita repressão. A hiperinflação, a recessão e a receita do FMI já batiam à nossa porta.


 


Havia uma tremenda falta de sonho, de perspectiva, de esperança. Essa energia toda, que poderia ter me deprimido e me feito desistir de tudo ou entrar para uma Igreja ou trocar de país, como aconteceu com tantos da minha geração, foi o que, contraditoriamente, me impulsionou, me levou à frente. A vida ensina, dizia o mestre revolucionário. Às vezes é preciso passar alguma dificuldade para levantar a bunda da cadeira e transformar a sua vida numa coisa melhor. Acelerar as coisas. Mas isso é outro assunto. Aqui quero dizer apenas que aqueles tempos duros me fizeram correr como um doido, sair pelo país afora para ganhar a vida e ter a sorte de ver cracassos em campo.


 


Tenho viva lembrança de Clodoaldo, Ailton Lira e Pita; Nilton Batata, Juary e João Paulo dando show em 1978. Domingo, revi esse filme em minha memória. O time de hoje não chega perto daquele. Mas jogou como time grande, com pegada de time vencedor e espírito de time campeão. Compactou a defesa, teve volantes mordendo e saiu com coragem e rapidez para o ataque. Foi um dos melhores jogos do Santos em muitos e muitos anos. E teve Moraes, o autor do gol do título, garoto brioso que honrou a camisa. E o Wanderlei Luxemburgo, que, mesmo que ainda não tenha percebido, tem alma santista. Sob seu comando, o time provou que, jogando sério, com o grupo unido dentro de campo e acreditando em si mesmo e no resultado, dá para ser feliz, sim.


 


Notável jogador


 


A nação santista em todo o universo — sim, há santista até no céu — percebeu que pode sonhar alto, que não há bicho-papão diante de uma equipe que joga com gana, com raça, com sangue no olho. Repito: não somos nem sombra do grande Santos de outros tempos, aquele time que dividiu a história do futebol em antes e depois. Mas é um time temido, um time querido, um time respeitado. Um time que fez jus à magia do manto sagrado, branco, que no domingo dominou o cenário sob o sol daquela tarde. Os jogadores entraram em campo com ''ganas de vencer'' — como diria um argentino ou um uruguaio. A técnica, é verdade, não entrou em campo por ser artigo raro no futebol de hoje em dia.


 


Qualquer torcedor mais antigo — não necessariamente mais velho — sabe que poucos jogadores da atualidade são daquela espécie que toca bem a bola, bate bonito na gorducha, amacia no peito, baixa com elegância no gramado. Dribla em espaços mínimos, cobra faltas com precisão milimétrica, dá passes de 40 metros com perfeição. Enfim: sabe tudo e mais um pouco. Essa casta de jogadores ainda tem alguns representantes ilustres. Giovanni, aquele notável jogador que surgiu em 1995 naquele Santos que foi vice-campeão brasileiro por obra e graça (mais por graça, diria Mino Carta) do juiz Márcio Rezende de Freitas, e que arrancou elogios de Pelé — o rei santista que passava por cima dos zagueiros como Átila, o huno, e cavalgava por sobre os povos que conquistava —, é um deles. Um senhor craque, injustamente despedido por Luxemburgo. Uma pena.


 


Os brados santistas.


 


Outra coisa legal de domingo foi a constatação de que havia poucos ''torcedores canalhas'' por lá, para usar uma expressão cunhada por Milton Neves e que significa aquele sujeito que vai ao estádio para torcer contra, para enervar o próprio time, fritar o técnico, xingar seus craques. A torcida do Santos queria a vitória. Não exigiu show. Tem sido assim nos últimos tempos. Uma torcida que difere muito da média das torcidas paulistanas. Os santistas querem luta, força, pegada. E bola na rede, claro. Mas não exigem arte. Respeitam muito quando ela acontece — um drible desconcertante de um Zé Roberto, um passe de 40 metros de um Rodrigo Tabata. Mas não acham que isso é pré-requisito.


 


Luxemburgo, o técnico bicampeão, para os santistas é um gênio. Há muito reconhecimento e gratidão pelos seus feitos. Dificilmente há um coro de burro quando ele decide substituir algum jogador. Agora, no prosseguimento da Taça Libertadores da América rumo ao título mundial em Tóquio, Japão, a torcida tem obrigação de continuar dando show — como fez domingo no Morumbi. Aliás, os brados santistas são diversificados, um espetáculo à parte — sem aquela chata e monótona repetição de outras torcidas paulistanas, que cantam por um ou dois minutos e param. Possivelmente porque se enchem. Compare:


 


''Timão ê-ô
Timão ê-ô''



 


ou


 


''Verdão ô-ô
Verdão ô-ô''


 


Ou ainda


 


''Uh-Tricolor
Uh-Tricolor''


 


São os vice-campeões paulista de 2007.


 


 


 


 

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