Padre Mororó e a liberdade como alvo

Em 30 de abril de 1825, no Campo dos Mártires, atual Passeio Público de Fortaleza, foi arcabuzado o padre Gonçalo Inácio de Loyola Albuquerque e Mello, extenso nome ao qual ele próprio acrescentou o “Mororó”, árvore da caatinga, por ocasião da Confederação do Equador.

Nascido no Riacho Guimarães, hoje cidade de Groaíras e então pertencente ao termo de Sobral, no Ceará, Mororó estudou no Seminário de Olinda, onde foi contemporâneo e colega de Frei Caneca, do Padre João Ribeiro e do Padre Miguelinho, o primeiro morto com ele na Confederação do Equador e os dois últimos mortos na Revolução de 1817, aquela de quem Cascudo disse haver sido “a mais linda, inesquecível, arrebatadora e inútil das revoluções brasileiras”.

Quando da sua ordenação, presbítero do hábito de São Pedro, como se declarava, o Bispo Azeredo Coutinho, fundador do Seminário, vaticinou: “Esse moço há de se perder na primeira revolução que houver no Brasil”. Errou por pouco. Não tendo participado do movimento de 1817, Mororó esteve, desde o início, na linha de frente da Confederação em terras cearenses, ao lado de Dona Bárbara e seus filhos, e de conterrâneos como Francisco Miguel Pereira Ibiapina.

A ousadia do Padre Mororó revelou-se na célebre ata da Câmara da Vila de Campo Maior, atual Quixeramobim, da qual foi o principal redator. Ali, aos 9 de janeiro de 1824, após o fechamento da Assembleia Constituinte por Pedro I, os presentes, “em vista à horrorosa perfídia de Pedro I (…) ele deixa e a sua dinastia de ser o Chefe Supremo da Nação”. A ousada ata prossegue, afirmando que, cessando a dinastia de Bragança, firmam uma República estável e liberal, a primeira República brasileira, antes ainda de ser proclamada a Confederação do Equador.

Mororó e os seus companheiros tiveram a ousadia suprema, naquele janeiro, de desafiar o império chamando Pedro I de traidor, declarando decaída a dinastia de Bragança e proclamando uma república nos sertões do mesmo Quixeramobim onde nasceria, poucos anos depois, Antonio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro.

A partir daí, não haveria mais caminho de volta para o Padre Gonçalo. Incorporou o “Mororó” ao nome e lançou, em 1º de abril de 1824, o Diário do Governo do Ceará, o primeiro jornal da província, da qual foi o redator e que viria a ser o órgão oficial da jovem república. Tendo como presidente Tristão Araripe e como comandante de armas Pereira Filgueiras, a República teve em Mororó o seu secretário de governo.

Efêmera república, entretanto, derrotada em pouco tempo. Com Tristão morto em combate, Pereira Filgueiras feito prisioneiro e morto a caminho da Bahia, a repressão imperial não demorou a derrotar o movimento e prender as suas principais lideranças.

Pedro José da Costa Barros, que assumira a Presidência da Província, encaminhou ao Ministro da Justiça que comandou a repressão uma recomendação especial acerca de Mororó: “Recomendo a V. Ex. esse malvado Padre Gonçalo Inácio Albuquerque Mororó, o redator das célebres folhas do Ceará, que tão descaradamente se afoitou sempre a insultar a sagrada pessoa de S. M. o Imperador, aleivosamente em seus péssimos escritos. Este demônio foi o autor da República de Quixeramobim e da sua abominável e execranda ata.”.

Condenado à forca, tal como sucedeu com Frei Caneca no Recife, não se encontrou um só que quisesse servir de algoz. A pena foi mudada para o fuzilamento, marcado para 30 de abril de 1825. Ao soldado que lhe trouxe a venda para os olhos, recusou com veemência: “Eu quero ver como isto é”. Ao outro que lhe trouxe a rodela vermelha para colocar sobre o peito e servir como alvo, retrucou: “Não é necessário, eu farei o alvo”. Com a mão sobre o peito, ousado, pândego e arrogante, gritou para os praças: “Camaradas, o alvo é este. E vejam lá! Tiro certeiro que não me deixe sofrer muito”. Riu dos algozes enquanto tombou sem vida, três dedos da mão decepados pelos tiros certeiros.

Naquele fim de abril, Mororó sabia que seu peito não era o alvo. Assassinava-se ali a liberdade. Vencia uma batalha a opressão. Quase dois séculos depois, o alvo é o mesmo, a liberdade e a democracia. Quase dois séculos depois, os “imperiais” disparam novamente contra a liberdade.

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