Frei Galvão: santo da casa faz milagre?

Joseph Ratzinger, que já veio ao Brasil como chefe da Inquisição, agora volta ao país como papa Bento XVI, para canonizar um brasileiro e afinar as fileiras mais conservadoras da igreja que lidera. É um novo lance da ofensiva que vem desenvolvendo contra

A chegada do chefe supremo da Igreja Católica Apostólica Romana está programada para o dia 9, na capital paulista onde, no dia 11, canoniza o beato Frei Antônio de Santa'Ana Galvão. No domingo, 13, em Aparecida, abre a V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe e, à noite, volta ao Vaticano. O grande destaque popular de sua vinda é a canonização do brasileiro, pois normalmente, as canonizações são feitas em Roma.


 


Frei Galvão viveu de 1739 a 23 de dezembro de 1822. O Vaticano está considerando que fez milagre. Ou melhor, como explica o dirigente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e bispo auxiliar de São Paulo, Dom Odilo Scherer, “os santos não fazem milagres mas Deus, somente. Dizemos, então, que o milagre é obtido pela intercessão dos santos, e não por um poder que eles próprios têm”.


Em 1934, monsenhor Martins Ladeira, arcipreste da Catedral de São Paulo, iniciou uma coleta de assinaturas visando a beatificação de Frei Galvão. Mas não há santo sem milagre – São Tomás de Aquino é exceção, como veremos adiante. No fim do século, duas brasileiras alegaram ter recebido milagres de frei Galvão: Daniela Cristina da Silva, 21 anos, e Sandra Grossi de Almeida, 37. A primeira ficou 28 dias internada num hospital, em 1997, quando tinha 4 anos, caindo em coma devido a complicação com hepatite A e outras doenças. Foi tratada com ciência e profissionalismo no Instituto de Infectologia Emilio Ribas. A segunda tinha problemas no útero e havia sofrido três abortos espontâneos quando engravidou de seu filho Enzo, que nasceu com saúde, graças à atenção profissional e médica recebida na Maternidade Pro Matre Paulista, também em São Paulo. Relegando ao deus-dará o reconhecimento ao atendimento recebido, as brasileiras e a Igreja acordaram que elas foram objeto de um acontecimento com “uma impossibilidade científica de explicação” e isto com um “parecer propriamente ‘científico’”, conforme explicou o padre Sergio Tani, que, para dar credibilidade ao seu ponto de vista, informa ser Doutor em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade da Santa Cruz em Roma, Professor de Direito Canônico na Pontifícia Faculdade de Teologia N. Sra. da Assunção e no Instituto de Direito Canônico “Pe. Dr. Giuseppe Benito Pegoraro”, Defensor do Vínculo no Tribunal Eclesiástico Interdiocesano de São Paulo (as maiúsculas, majestáticas, são todas dele, Tani). É interessante que, no século XXI, ainda se fale em milagres e que, acuada pelo desenvolvimento do conhecimento científico, a Igreja agora invada as instituições hospitalares para reivindicar como milagre o que ali acontece (também está sendo atribuída a madre Tereza de Calcutá uma cura alcançada num hospital hindu).


 


A palavra “milagre” remete ao latim “miraculum”, um substantivo que indica prodígio, fato extraordinário, e ao verbo, também latino, “miraro”, com o sentido de admiração, espanto. Os religiosos sempre trataram de dar uma interpretação miraculosa às coisas acontecidas e não compreendidas. Em Josué, um dos Livros Históricos do Antigo Testamento, está registrado: (12-14) “No dia em que Javé entregou os amorreus aos israelitas, Josué falou a Javé e disse na presença de Israel: ‘Sol, detenha-se em Gabaon! E você, lua, no vale de Aialon!’ E o sol se deteve e a lua ficou parada, até que o povo se vingou dos inimigos. No Livro do Justo está escrito assim:
‘O sol ficou parado no meio do céu
e um dia inteiro ficou sem ocaso.
Nem antes, nem depois
houve um dia como esse,
quando Javé obedeceu à voz de um homem.
É porque Javé lutava a favor de Israel’”.


 


Mas a existência de milagres é também milenarmente contestada. O eclético Marco Túlio Cícero, que viveu de 106 a 43 antes de Cristo, esclarecia: “Nada acontece sem causa e nada acontece a não ser que possa acontecer; quando o que pode acontecer acontece de fato, isso não pode ser considerado milagre”.
Nos primórdios do cristianismo, Aurélio Agostinho, que viveu de 13 de novembro de 354 a 28 de agosto de 430 e é considerado um dos maiores vultos da filosofia cristã, conceituava milagre como “o que é obscuro ou parece racional e transcende as expectativas do observador”. Quase um milênio depois, Tomás de Aquino (1225-74), doutrinou na sua “Suma Teológica” que “devem chamar-se propriamente e em absoluto milagres aquelas coisas que são feitas pelo poder de Deus, fora da ordem natural das coisas” (a expressão latina, tão ao gosto do atual papa, é “contra consuetum cursum naturae”). Tomás de Aquino não obrou milagres e a Igreja ficou constrangida em santificá-lo sem que ele houvesse violado as leis da natureza. Contudo o papa João XXII, em 1323, o canonizou, argumentando que cada questão que ele abordou e “resolveu” a favor dos dogmas católicos eram “milagres”…


 


Por séculos a Igreja impôs seu domínio através da violência e torturou e queimou quem discordasse de idéias como essas. Mas mesmo entre pensadores que não professavam o materialismo, a existência de milagres era contestada. David Hume (1711-76), por exemplo, escreveu que um milagre “pode ser rigorosamente definido como a transgressão de uma lei da natureza resultante de uma volição da Divindade ou da interposição de um agente invisível”, mas alertava ser impossível acreditar em milagre porque ele só existe com base no testemunho humano. Hume considerava que “a desonestidade e o disparate são mais prováveis que a alteração do curso natural da natureza” (que o douto padre Tani não nos leia…). Outro filósofo idealista, Søren Aabye Kierkegaard (1813-55), foi peremptório ao escrever no seu Diário (X, A, 373) que “o milagre continua sendo o que é: artigo de fé”.


 


Já o materialista empedernido Richard Dawkins não deixa dúvidas do que pensa, como é de seu feitio, e no livro “O relojoeiro cego”, de 1986, considera que “os eventos que comumente denominamos milagres não são sobrenaturais, e sim parte de um espectro de eventos naturais mais ou menos improváveis”.
Milagre é, portanto, para quem acredita, uma exceção e superação das leis e da força da natureza por intervenção divina. Como se vê, Frei Galvão, além de ser um intermediário de Deus para contrariar a ordem natural das coisas, curando pessoas que estavam recebendo tratamento médico, ao ser considerado santo em pleno Brasil contraria também o dito popular que reza que “santo da casa não faz milagres…”


 

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