“O Regresso”, entre selvagens

Em filme sobre traição e vingança, cineasta mexicano Alejandro G. Iñárritu usa a ferocidade do homem do século 19 para matizar a violência de hoje. 

A violência nos filmes do cineasta mexicano Alejandro Gonzalez Iñárritu sempre vem do inusitado. Como o garoto árabe, em “Babel “ (2006), que ao disparar o tiro a esmo do alto da montanha atinge a turista estadunidense no ônibus distante dele. Ou do próprio cotidiano num hospital, a exemplo de “21 Gramas” (2003), de onde são desencadeadas diversas situações. Fatos estes que mudam as vidas das pessoas ao seu redor ou da própria família cuja existência era antes bem estruturada.

Se nas citadas obras, eles advêm de diferentes motivações, neste “O Regresso” seu leitmotiv é o comércio de peles de búfalos nos EUA do início do século XIX. O que leva os índios a perder suas fontes de alimentação, de indumentária e de coberturas para suas tendas. Os caçadores de peles, na verdade saqueadores, os matavam até a extinção. Daí serem rechaçados pelos indígenas e atacados pelos famintos ursos, ameaçados de extinção em seu próprio habitat.

São nestes confrontos que Iñárritu e seu corroteirista Mark L. Smith, inspirados na novela do escritor estadunidense Michael Punke, incluem Hugh Glass (Leonardo de Caprio). Víúvo de uma índia powaqa, ele e o filho Hawk (Forrest Goodluck) ganham a vida como caçadores de peles na região do forte comandado pelo capitão Andrew Henry (Domhnall Gleeson). Quando são atacados pela tribo que se opõe à caça de búfalos em seu território, eles guiam seus parceiros através da floresta.

Violência humana se iguala à do primata

Contudo o tema deste “O Regresso” não é o drama de Glass, mas a violência como meio de vida seu e dos saqueadores, da floresta como lugar da surpresa mortal, do rio como espaço de armadilhas e do faminto urso como ameaça. Se os humanos dão vazão a seu instinto de primata, o urso guia-se pela sobrevivência, a floresta e o rio seguem as estações, porém todos reagem com tal ferocidade que estraçalham quem os confrontam.

Surge daí a ultraviolência, as lutas corporais em meio à neve, a intensa chuva e as altíssimas árvores. Iñárritu realça assim o caráter físico, viril do homem (Meu Ódio Será Sua Herança, Sam Peckinpah, 1969). E a destreza com que manuseia a arma de fogo, o punhal ou a espada para liquidar o inimigo (Rei Arthur, Antoine Fuqua, 2004). Espécie de ficcionalização da violência cotidiana, assistida em vivas imagens na TV ou na Internet, como mero replay, não uma distorção ou retorno à barbárie.

Assim, pelas vias da ficção, Iñárritu situa historicamente seu filme. Se antes eram os “desbravadores” a invadir as terras indígenas e deserdá-los (Apache, Robert Aldrich, 1954), hoje são os EUA e aliados da União Europeia (UE) a desestruturar culturas milenares (Iraque, Afeganistão, Líbia e Síria) para controlar reservas de petróleo. Suas ações provocam milhares de mortos e refugiados e retaliações das forças fundamentalistas, com igual mortandade no Oriente Médio e na Europa, sem fim à vista.

Glass desconstrói imagem de herói

Afora estes paralelos, Iñárritu deixa de lado parte da biografia de Glass para reescrevê-la nos moldes dos velhos westerns. Chega a cumprir toda a jornada fixada por Joseph Campbell, guru dos roteiristas e dos clichês hollywoodianos (ascensão, queda, reerguimento e triunfo), para firmar-se como herói. Principalmente em seu esforço para sobreviver ao violento ataque do urso, na melhor sequência do filme, e às armadilhas do rio para, enfim, desconstruir sua imagem de vingador para se tornar anti-herói.

Desde o início a narrativa linear, centrada em seus percalços, se impõe. Numa sucessão de referências que vão de Rambo Programado para Matar (Ted Kotcheff, 1982), ao cuidar de suas próprias feridas, às manadas de búfalos de “Dança com Lobos, Kevin Costner (1990)”, abatidas na pradaria, e ao John Ford de Sangue de Herói (1948) na sequência da venda de bebidas e armas aos índios, também recorrente a inúmeros far-west B.

Iñárritu não trata da interação de Glass com a natureza e os índios, ainda que tenha vivido com uma powaqa. Ele é um dos saqueadores, e age como tal. Sequer se questiona por isso. Sidney Pollack, em “Mais Forte que o Ódio (1972)”, usa o citadino Jeremiah Johnson (Robert Redford) para mostrar o quanto o homem interage com a natureza até desvendar seus segredos. Glass, pelo contrário, só deixa aos índios a conclusão de sua vingança, para conquistar inesperada redenção.

Anti-herói tem igual culpa

É o único personagem de certa complexidade na obra de um diretor acostumado a delineá-los como seres multifacetados (Amores Brutos, 2000). E se relaciona com outros de menor densidade dramática, salvo pelo vilão John Fitzgerald (Tom Hardy) com os cabelos caídos sobre a face, olhar enviesado e voz ameaçadora. E como nos clássicos westerns, Glass termina sozinho. Seu individualismo de anti-herói é tão simbólico quanto o do herói, com igual culpa a carregar.



“O Regresso”. (The Revenant).
Western. EUA. 2015. 156 minutos. Música: Ryuichi Sakamoto/Alva Noto. Edição: Stephen Mirrione. Fotografia: Emmanuel Lebezki. Roteiro: Mark L.Smith/Alejandro G. Iñárritu. Direção: Alejandro G. Iñárritu. Elenco: Leonardo DiCaprio, Tom Hardy, Domhnall Gleeson, Will Poulter, Forrest Goodluck.

(*) Oscar 2016: Melhor Diretor, Direção de Fotografia, Ator.

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