“Carol”, a burguesa e a balconista

Em história que foge a estereótipos, cineasta estadunidense Todd Haynes expõe preconceitos, casamento artificial e solidão nos EUA dos anos 50.

A escritora estadunidense Patrícia Highsmith (1921/1995), por anos radicada em Locarno na Suiça, tinha horror ao ser humano. Em suas novelas psicológicas é sempre o pacato cidadão classe média a cometer bárbaros assassinatos, motivado por estranhas e mórbidas compulsões (Águas Profundas, 1957). Raramente mergulhou no universo da paixão entre duas mulheres, como em “Preço do Sal (1953), ou “Carol” no cinema.

Seu olhar é menos visceral, distante da abordagem explícita de seu compatriota James Baldwin (1924/1987), ao narrar a relação entre dois jovens no polêmico “Giovanni” (1956). Prefere situar as personagens em seu meio, dotando a trama de outros contextos que apenas os da relação amorosa. O cineasta Todd Haynes não foge a este tratamento ao realçar as convenções, o vazio, o artificialismo burguês nos EUA da década de 50.

Seu tema em “Carol” é relação amorosa de duas mulheres de diferentes níveis sociais: a experiente burguesa Carol Aird (Cate Blanchett) e a jovem balconista de loja de departamento Therese Belivet (Rooney Mara). Em torno delas ele e sua roteirista Phyllis Nagy trançam fios sobre homofobia, aparências no atribulado casamento de Carol com o burguês Harge Aird (Kayle Chandler), frieza de Therese com o “namorado” Richard Semco (Jake Lacy), numa radical história para a época.

Haynes trabalha as tendências

Haynes trata com normalidade as tendências afetivas delas. Carol, charmosa, sofisticada, transita pelo glamourizado mundo das mansões, restaurantes da moda e hotéis de luxo. Therese, inexperiente, indefesa, sempre receosa de dizer não, vive num pequeno apartamento e sonha ser fotografa profissional. Os contrastes entre elas são enormes para Carol não usar a arte da sedução e as facilidades de sua privilegiada posição.

Há nisto tanto imposição de classe, de poder, a facilitar suas investidas, quanto ela estar vulnerável, carente de afeto, devido a seus problemas conjugais. Mas Therese facilita a proximidade, por sua relação com Semco não a satisfazer e a atração exercida por Carol ser forte demais para ela recusar. E o envolvimento se dá sutilmente por meio de símbolos e mimos: o trenzinho, referencial masculino de Therese; a câmara, modo de Carol mostrar sua paixão pela jovem.

O clima no qual mergulham é realçado pelos tons dourados em variações avermelhadas, e pela eficiente fotografia de Ed Lachmann, muitas vezes em plano aproximado. Tais como os de “Tudo o que o céu permite” (1955), do mestre alemão Douglas Sirk, tendo a contribuição dos figurinos, os vestidos de cores fortes de Carol e os em tons escuros e cinza de Therese, que bem traduzem o romance por elas vivido.

Abby tem uma atitude serena

Ao contrário de filmes e livros que tratam de igual tema, as personagens de Highsmith e Haynes são conscientes de suas opções, não seres desestruturados, atormentados, vítimas da derrisão. Os impasses enfrentados por Carol vêm de Harge, por ter ela vivido outra experiência com a amiga de juventude Abby (Sarah Poulson). Esta é serena, introvertida, com atitudes de quem se sente bem com sua opção queer.

A pressão de Harge faz com que Carol se veja limitada em suas ações não só por ele, mas também para não se afastar da filha Rindy (Saddie Hein). O custo para ela é submeter-se às relações artificiais, insinceras, mantidas pelas aparências. Nem os negócios deixam livres os dias de Harge. “Nunca tivemos um Natal, ele está sempre ocupado”. Enfim, primeiro Abby, depois Therese são consequências de latente tendência.

Em sequências de road-movie em que terminam na pequena Waterloo, no Iowa, elas têm seu momento de suspense, mesclado a instantes a sós. Haynes aproveita para descontruir a seriedade e o mistério com que outros diretores dotariam a vigilância do detetive particular. No plano-sequência do restaurante do hotel usa comicidade, ironia, deboche, pondo Carol a desmascarar o espião e dar fim ao plano de Hage de afastá-la da amada.

Carol impõe sua visão

Mas ao contrário de Abdellatif Kechiche em “Azul É a Cor Mais Quente” (2013), Haynes não faz de “Carol” uma obra de mútua iniciação. Enquadra-as à distância, em quase recato. Ainda assim predomina a tensão, denunciando culpa pela distância de Harge e Rindy. Carol só reverte esta sensação na bem construída sequência de conciliação no gabinete do juiz, quando obtém o direito de dividir-se entre Rindy e Therese, sem as amarras de Harge.

De todo modo, a ousada abordagem de Highsmith para sua época se presta ainda para superar homofobia e limites. Haynes a preserva, sem conciliação à burguesia ou à classe média, embora a burguesa Carol tenha mais liberdade para exercer sua opção, que as lésbicas das camadas excluídas da estrutura social burguesa. Contundo, um avanço.


"Carol". (Carol). Drama. EUA/Reino Unido. Drama. 2015. 118 minutos. Edição: Affonso Gonçalves. Música: Carter Burwell. Fotografia: Ed Lachmann. Roteiro: Phyllis Nagy. Direção: Todd Haynes. Elenco: Cate Blanchett, Rooney Mara, Kyle Chandler, Sarah Paulson.

(*) Indicações ao Oscar 2016: Atriz: Cate Blanchett, Atriz Coadjuvante: Rooney Mara, Trilha Sonora: Carter Burwell, Roteiro Adaptado: Phyllis Nagy, Fotografia: Ed Lachmann, Figurino: Sandy Powell.

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