“Os Oito Odiados” – Tiros e falação

Cineasta ítalo-estadunidense Quentin Tarantino passeia por vários gêneros para espelhar amoralismo e violência cotidiana dos EUA de hoje.

Nada mais imagético num filme do cineasta ítalo-estadunidense Quentin Tarantino do que um banho de sangue em estética pop. Neste “Os Oito Odiados” o caçador de recompensas Major Warren Marquis (Samuel L. Jackson) se une ao novo xerife de Red Rock (Pedra Vermelha), Chris Mannix (Walton Goggins), para liquidar uma quadrilha. Não se trata de acerto de contas entre facínoras, mas de metáfora da exacerbada violência cotidiana nos EUA, onde assassinatos e execuções se confundem.

Tarantino pega arquétipos do western, caçador de recompensa, carrasco, xerife e vilões, e borra a distância entre eles. Marquis e Mannix formam um trio com o carrasco John Ruth (Kurt Russell), para enfrentar os parceiros da sentenciada à morte Daisy Domerge (Jennifer Jason Leigh), pensando apenas na recompensa em dólares. Ao longo dos cinco capítulos, em que se divide o filme, eles irão tentar decifrar as intenções dos misteriosos albergados na paragem da diligência, devido à nevasca.

Nenhum deles se destaca pelo respeito à moral, à ética, à solidariedade, tal a vontade de livrar-se uns dos outros. Marquis é o único a tentar se diferenciar, por ser afrodescendente e se dizer amigo do presidente dos EUA Abraão Lincoln (1809/1965). Ruth é frio e truculento. Seus constantes murros no rosto de Daisy o transformam numa máscara.

Daisy não usa charme ou seduz

Ao contrário de suas congêneres em “Jackie Brown (1997) e “Kill Bill I e II (2003/2004), cujo objetivo é a vingança, ela suporta os maus tratos sem valer-se da sedução. Aliás, nos oito filmes de Tarantino, as mulheres, embora belas, não se valem do corpo para dominar seus oponentes, sim de revólver ou espada. Isso só ocorre com Shosanna (Melanie Laurent), em “Bastardos Inglórios (2009)”, mesmo assim para atrair o oficial nazista para uma cilada, não por paixão.

Ainda assim, ela não é diferente dos “desconhecidos” que ocultam suas intenções. Oswaldo Morley (Tim Roth) é o carrasco profissional à espera do fim da nevasca, o cowboy John Cage (Michael Madsen) se mostra enigmático e o mexicano Bob (Demien Bichir) não se manifesta. Resta o idoso general sulista Sanderly Smithers (Bruce Dern), ainda remoendo a derrota na Guerra da Secessão (1880/1864), preso à cadeira de rodas. Como numa trama policial de Agatha Christie (1890/1976), Marquis e Mannix se esforçam para desmascará-los, sem Hercule Poirot.

Com esta estruturação, Tarantino foge ao western clássico. Inexiste a dualidade, a coragem, a superação de “No Tempo da Diligências (1939)”. John Ford (1895/1973) deu-lhe uma trama psicológica, com os personagens espelhando as fraquezas humanas. A diligência irrompendo a planície gelada, na longa sequência de abertura de “Os Oito Odiados”, é uma referência a esse clássico, em bela fotografia de Robert Richardson.

Não há mocinhos, apenas bandidos

No entanto, ela também serve para situar a história e os personagens principais, que entram num impasse do qual nem o Cristo crucificado, visto em primeiro plano na nevasca, os salvam. Mesmo assim, Marquis, Ruth e Mannix pouco se importam com as artimanhas de Daisy, enfrentam-na e a seus parceiros numa batalha onde o mal é absoluto e não tem lado. Impossível diferenciar os supostos mocinhos dos claramente bandidos.

Assim o espectador se defronta com a estética do faroeste espaguete (Por Um Punhado de Dólares, Sérgio Leone, 1964), os filmes de kung fu, os policiais de John Woo (Fervura Máxima, 1992) e, principalmente, os faroestes de Sam Peckinpah (Meu Ódio Será Sua Herança,1969). Estes, sim, recorrentes à violência estilizada de Tarantino. A troca de tiros, os corpos estilhaçados, o sangue cobrindo o assoalho, em meio à incessante falação dos personagens, terminam por destacá-la.

Não são diálogos, sim monólogos espichados em linguagem de rua estadunidense. Recurso usado por Tarantino para prolongar a ação, entremeando palavrões às falas, citações depreciativas do “negro, negro, negro”, a tal ponto que o racismo se dilui, se tornando um vício de linguagem. O que ao invés de ojeriza provoca o riso, pois Marquis também o repete devolvendo ao outro a estigmatização a ele dirigida. Mas isto não apaga o racismo.

Existência acaba sem gratificação

Com este tratamento, difícil não ver em “Os Oito Odiados” metáfora da violência entranhada na sociedade estadunidense, com armas vendidas à granel e corpos se acumulando em escolas, ruas, parques e prédios. As poças de sangue a cobrir o assoalho, com os mortos espalhados pela parada de diligência dão um clima de terror, de que a existência em ambos espaços se esvai sem gratificação alguma na vida real e na ficção.

Se Tarantino quis traçar ou não este paralelo difícil saber, embora afirme não fazer citações às realidades sociais. Contudo, obras de arte ensejam leituras, referências e simbologias, e elas proliferam neste western-pop, que se assemelha a um filme de terror igualmente pop.

“Os Oito Odiados”. (The Hateful Eight). Western. EUA. 2015.168 minutos. Edição: Fred Raskin. Música. Enio Morricone. Fotografia; Robert Richardson. Roteiro/direção: Quentin Tarantino. Elenco: Samuel L. Jackson, Kurt Russell, Jennifer Jason Leigh, Walton Goggins, Tim Roth.

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