Sem escrúpulos, disposto a tudo para chegar ao poder

Ele não vale nada, mente, suborna, envolve a própria família em escândalos, se faz de vítima para atraiçoar todos os que estão em seu caminho e, em meio à derrota humilhante que o varrerá para sempre do poder e o trancafiará nas piores páginas dos compêndios de história, ainda vai proferir com a língua afiada e os olhos esbugalhados de sempre: "Meus reino por um cavalo”. Seu nome é…Ricardo III.

A foto em destaque é do filme homônimo, uma versão dirigida por Richard Loncraine e estrelado por Ian Mckellen, no papel do vilão, porém o assunto aqui é a tradução adaptada de Luiz AntonioAguiar: Ricardo III / Willian Shakspeare (Rio de Janeiro. Ed. DIFEL, 2009).

Ricardo de Gloster (Gloucester), o de Willian Shakespeare e o da adaptação, personifica tudo de perverso a que a ambição ilimitada pelo poder é capaz de conduzir, principalmente quando ela fermenta, borbulha e eclode em um espírito atormentado, ressentido e despido de qualquer senso moral:

“Ricardo: Você conhece alguém a quem a corrupção do ouro seria uma tentação para executar secretamente um assassinato?

Pajem: Meu senhor, conheço um nobre descontente com a vida porque seus pobres recursos não correspondem à altivez de seu espírito. O ouro, para ele, vale tanto quanto vinte oradores e, sem dúvida, o tentaria a fazer qualquer coisa.

Ricardo: E qual o nome dele?

Pajem: Tyrrel, meu senhor.

Ricardo: Conheço alguma coisa dele. Vá, pajem. Traga esse homem aqui. [Sai o pajem]. O sábio Buckingham, homem de tão profundas considerações de consciência, não será mais aquele de quem tomo conselhos. Então, veio até este ponto comigo, e agora para para respirar? Bem, que seja! Casteby, aproxime-se. Espalhe o boato de que Ana, minha esposa, está gravemente enferma. Vou ordenar que ela fique isolada. Além disso, descubra para mim algum nobre ambicioso e de pouca projeção, com quem irei casar imediatamente a filha de Clarence… O garoto é um idiota. Não tenho por que temê-lo. Atenção! O que houve? Está sonhando acordado? Repito, espalhe por aí que Ana, minha rainha, está doente, quase morrendo. Aja depressa. Preciso acabar logo com todas as esperanças de me prejudicarem, antes que cresçam. [Sai Catesby]. Devo me casar com a filha do meu irmão Eduardo porque, de outro modo, meu reinado repousará sobre uma lâmina de vidro. Vou matar seus irmãos e depois me casar com ela. É um caminho tortuoso para o triunfo! Mas estou tão afundado no sangue que um pecado leva a outro e não tenho lágrimas de piedade para derramar.”

Ricardo de Gloster, já empossado Ricardo III, explicita aqui seus planos já depois de ter assassinado o rei Eduardo IV, seu irmão, esposo da mesma Ana a quem desposou e de quem pretende se livrar, e Clarence, seu outro irmão, que o tinha por aliado.

Para Ricardo de Gloster não há impedimento de ordem política, religiosa, ética ou moral que o impeça de atingir aquilo a que almeja. É invejoso, cruel, cínico, hipócrita, caviloso, manipulador e astucioso em mover as vaidades, ambições e falta de escrúpulos alheios em favor de suas próprias pretensões:

“Ricardo: Eu, de aparência tão desagradável, destituído da formosura necessária para agradar às jovens de andar gracioso. Eu, disforme, traído pela natureza, posto no mundo antes da hora, inacabado e tão horrendo que os cães ladram à minha passagem, não aprecio a beleza nem os prazeres desses dias. E, se o sol, para mim, não faz mais do que exibir a mim mesmo minha sombra deformada, o que me resta é odiar esse tempo de fraqueza e de paz. Assim, sou o vilão, aquele que trama e conspira. E uso tudo o que posso: argumentos falsos, calúnias, sonhos, profecias tresloucadas, o que seja, para induzir perigosamente ao engano. Para gerar o ódio que leva ao assassinato.”

A presente edição, além do texto adaptado com grande felicidade, oferece para o leitor: uma “Apresentação”, uma “Introdução”, um “Posfácio” e tópicos, ao final, “Para Discussão e Aprofundamento” muito convenientes, pois situam o contexto histórico e artístico desse drama shakespeareano e orientam uma leitura mais detida e aprofundada da peça.
Em tempos bicudos como estes nossos, não deixa de ser instrutivo saber que há alguns séculos um dramaturgo do outro lado do Atlântico foi movido a tratar de algo que nos diz hoje tanto respeito. E, ao final das contas, se nos serve de consolo, que a corrupção pode, ao menos, render excelente literatura.

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