“Olmo e a Gaivota”, desconstruindo o sagrado

Na contramão da sacralização da gravidez, dupla de cineastas Petra Costa e Lea Glob prefere tecer os impasses e as perdas impostas à mulher.

Tanto faz se este “Olmo e a Gaivota” seja visto como ficção ou documentário. Durante seus 87 minutos, o espectador nunca o enquadra em qualquer desses gêneros. Importa mais a forma como a dupla de diretoras Petra Costa, brasileira, e Lea Glob, dinamarquesa, registra os impasses impostos à atriz italiana Olívia Corsini e a seu companheiro francês Serge Nikolai pela súbita notícia de gravidez, na estreia da peça “A Gaivota” (1896), do dramaturgo russo Anton Tchekhov (1860/1904), em Paris.

Para dar conta desse tema, a dupla Costa/Glob se concentra no período de nove meses e em suas consequências para Corsini e Nikolai, casados na vida real. Não só em termos de ficção, mas também documental, à maneira de Richard Linklater, em “Boyhood – Da Infância à Juventude” (2014), no qual registra o transcurso de 12 anos na vida do jovem Mason (Ellar Coltrane). E se concentra na gestação e em sua interferência na vida familiar e na carreira do casal, mostrando contradições e desconfianças.

Se este é o vértice real do filme, o ficcional é sustentado pela atribulada relação amorosa de Arkadina e Trigorin, em “A Gaivota”, com o objetivo de espelhar as hesitações do casal francês durante a gravidez de Corsini. Principalmente quando Nikolai relata seu bom entrosamento com a atriz que a substituiu na peça, e ela teme não só perder espaço no grupo teatral, mas também desconfia de que ele está tendo um caso com a nova parceira. Assim, a dupla Costa/Glob insufla dramaticidade na narrativa.

Corsini teme perder espaço

Emerge daí uma variedade de reações psicológicas de Corsini, dentre elas, a solidão no apartamento, justamente durante tourneé do grupo em Nova York, onde poderia se destacar. E notadamente, o medo de sua carreira declinar, devido aos cuidados que a criança iria requerer. Nestas sequências, a dupla Costa/Glob configura suas frustrações, mostrando-a numa cadeira, como se nada pudesse fazer, tão só esperar o bebê nascer.

Estas projetadas ansiedades, tão comuns às mulheres da pós-emancipação acostumadas às relações de trabalho, descontroem a sacralidade da gravidez, revelando o quanto sua vida hoje é múltipla. Corsini permanece fechada em casa por instrução médica, cuidando tão só dos afazeres domésticos. Mesmo tendo suas conquistas de gênero lhe atribuído múltiplas atribuições, sem negligenciar as da maternidade. Assim, é um horror não poder exercê-las em sua totalidade.

Ela o demonstra numa bem construída sequência em que expõe a Nikolai o quanto é difícil não poder se envolver com o teatro como antes. Sente-se solitária, enquanto ele tem liberdade para continuar a circular. “Está gravidez não é só minha, é sua também, se estou gravida, você também está. Devia ficar aqui comigo”. E ele prova nada entender. Diz apenas estar fazendo a parte dele: “Estou pagando o aluguel”. É daqueles diálogos de arrepiar, pois captam todas nuances e sentidos do macho.

Corsini faz Nikolai dividir as tarefas

A maneira como ela expõe sua visão o faz se envolver mais, dividir as tarefas, procurando se corrigir. Mesmo desajeitado, na sequência da festa para os amigos, Nikolai tenta cuidar da decoração e ela o corrige, dizendo que as cores têm que combinar, não é só juntá-las num buquê. Simples metáfora para se dar sentido à união dos diferentes, com suas características, sem fazê-los desaparecer no emarando multicolor. Ou seja, algumas emanações cabem às mulheres, outras devem ser divididas.

A condução da dupla Costa/Glob difere da opção do diretor francês Rémi Bezançon, em “Um Evento Feliz” (2011), onde a gravidez de Bárbara (Louise Bourgoin) é cercada da alta tecnologia e a ausência de fragilidades. Seus sonhos se restringem a ter um bebê saudável, sem as apreensões de Corsini. O válido no filme são as etapas da gravidez e os cuidados que ela requer. No entanto, é destinado à alta burguesia e à alta classe média, cujas preocupações não são as contas no fim do mês, mas seu status quo.

Com o olhar feminino na direção, “Olmo e a Gaivota” se concentra na mulher que se divide em múltiplas tarefas. E a gravidez é tão só uma delas, podendo a seu tempo ser a principal ou não, dependendo exclusivamente dela. Esta maneira de matizar o tema deixa implícita a preocupação da dupla Costa/Glob com a gravidez. A de que esta continue a ser tida como uma dádiva, ou seja, uma construção teológica usada por fundamentalistas e a burguesia para marginalizar largas faixas de mulheres.

Desse modo, a dupla Costa/Glob construiu um filme intercalando sequências de “A Gaivota”, usando uma variedade de planos fixos, deixando o espectador absorver o sentido da narrativa. Em alguns deles, evolui para Corsini evadir-se, deixar a caixa em que foi colocada, para entrar em contato com a rua. Sua contribuição está em fugir aos estereótipos das obras que reafirmam a concepção sagrada da gravidez, sem atentar para a situação em que ficam as mulheres, sem condições de se sustentar e de ter filhos.


Olmo e a Gaivota”. (Olmo and the Seagull). Documentário/drama. Brasil/Portugal/Dinamarca/França/Suécia. 2014.87 minutos. Trilha sonora: Adam Taylor. Montagem: Tina Baz, Marina Meliande. Fotografia: Muhamed Hamdy. Direção: Petra Costa/ Lea Glob.

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