Memórias da saga comunista (V)

O médico Jamil Murad, presidente do PCdoB paulistano, deve assumir uma cadeira na Câmara Municipal, na vaga de Netinho de Paula. Este foi cassado pelo TRE por ter trocado o PCdoB pelo PDT, em abril passado. O tribunal entendeu que o mandato é do partido e, assim, devolveu-o aos comunistas.

Jamil Murad, que também integra o Comitê Central do Partido, é militante histórico. Em 2012, escrevi seu perfil para o livro “Vida, veredas: paixão”, um mosaico de memórias da saga comunista que produzi para a Fundação Maurício Grabois. É o que vem a seguir.

Sangue no plenário da assembleia legislativa 

Na tribuna da Assembleia Legislativa de São Paulo, a cena não é apenas incomum, mas dramática. O parlamentar ensanguentado – o sangue já ressequido cobre-lhe parte dos cabelos e do pescoço e espalha-se pela camisa e pelo paletó – denuncia a agressão sofrida há pouco por parte de soldados da Polícia Militar. Ao chegar na assembleia, logo após um confronto entre manifestantes contrários às privatizações do governo FHC e milicianos diante da Bolsa de Valores, bem que o aconselharam lavar-se e trocar de roupa. Mas ele insistiu em se pronunciar assim como chegara, denunciando a repressão policial com a contundência dos ferimentos e do sangue provocados em seu próprio corpo por golpes de cassetete. “Esta é uma situação indecente”, proclamou.

Cena dramática, incomum para os padrões da Assembleia Legislativa, mas nada estranhável em se tratando do deputado Jamil Murad, o denunciante ensanguentado. Afinal, em sua longa trajetória de militante político trazia a marca de estar sempre à frente do movimento social, política e fisicamente, para o que desse e viesse. Como deputado, impunha-se mediar soluções entre manifestantes e policiais, evitando confrontos. Numa greve de portuários em Santos, em despejos do sem-teto de São Paulo ou sem-terra no Pontal do Paranapanema, nos movimentos reivindicatórios ou nos protestos políticos, lá estava ele intercedendo em favor dos que lutavam por seus direitos.

Nem sempre essas mediações resultaram pacíficas. Em uma rebelião ocorrida no presídio do Carandiru – o mesmo que, mais tarde, seria palco da chacina de 111 detentos pela Polícia Militar – Jamil foi espancado violentamente por agentes penitenciários, agressão capturada pela reportagem da Rede Globo, que transmitiu o episódio ao vivo para todo o País.

Desde cedo fora assim, um Jamil cordial e solidário, o que lhe valia amizades e carinhos. Em José Bonifácio, o minúsculo município na região de São José do Rio Preto, onde nascera em 1943, o percurso cotidiano de seis quilômetros até a escola ia serpenteando pelos sítios, madrugada ainda, arregimentando meninos e meninas, semelhava passeata, entre cantorias e brincadeiras. À frente da alegre marcha que reunia, ao cabo, mais de 30 crianças, o menino Jamil, um dos quatro filhos dos pequenos agricultores Hadige e Emídio Murad, que aos outros encantava por seu afeto e bondade.
Aos 15 anos, recém concluído o ginásio, a notícia da revolução cubana, estampada em manchetes garrafais da Última Hora, quebrou a modorra interiorana. Jamil e um grupinho de amigos, mesmo sem saber muito por que, torciam pelos barbudos de Fidel Castro. Mais tarde, dividindo com universitários uma república em São José do Rio Preto, onde cursava o científico, foi saber mais das coisas, pois ouvia atentamente os debates sobre filosofia e política daquela rapaziada esperta da faculdade. Cimentou assim uma visão política, o que não era tão difícil de ocorrer naqueles insubmissos e efervescentes primeiros anos da década de 60.

Mas foi em Ribeirão Preto, onde iniciou seu curso de medicina na Universidade de São Paulo (USP), em 1963, que Jamil se abriu definitivamente para a consciência e a ação políticas. Apoiava o Governo Jango e suas reformas de base e, como integrante da Liga Brasileira de Combate à Moléstia de Chagas, ligou-se ao centro acadêmico liderado pela esquerda. Nas férias, montava num jipe com alguns colegas e ia tratar do povo na prevenção de Chagas. Mantinha a cordialidade de sempre e a consequente capacidade de granjear amizades de diferentes campos ideológicos. Era comum colegas, filhos de gente abonada, convidá-lo para padrinho de casamento, quando o pobretão Jamil muitas vezes não tinha dinheiro para o terno e o presente.

Em 1968 Jamil já estava na linha de frente das mobilizações, enfrentando os cavalos da polícia nas ruas com bolinhas de gude, realizando comícios relâmpago, pichando muros, liderando passeatas. Foi quando um colega lhe passou, muito reservadamente, um documento do PCdoB que defendia a radicalização da luta contra a ditadura. Após ler atentamente o documento, Jamil procurou o colega e foi lacônico: “Estou dentro”.

Já em São Paulo, em 1971, concursado no Hospital do Servidor Público e especializando-se em nefrologia no Hospital das Clínicas, Jamil seguia a máxima de estar sempre com a mochila, pronto para qualquer tarefa, sobretudo a ligada à luta armada. Mas não sabia que então a guerrilha gestava-se no Araguaia. Submerso na atividade partidária, participava de reuniões, viajava para contatos e articulações no interior, levando documentos, distribuindo orientações. Movimentações rigorosamente clandestinas, circunstância imposta pela ditadura que, sob o tacão do general Garrastazu Médici, vivia o ápice do terror. Naqueles primeiros anos da década de 70 o partido fingia-se de morto.

Em 1975 a mulher, Ana Consuelo, com quem Jamil se casara em 1969, ainda em Ribeirão Preto, morreu aos 29 anos por complicações decorrentes de um transplante de rim, deixando uma filha. Orientado pelo partido a se manter informado, comprou um aparelho de rádio Transglobe, para seguir as transmissões da rádio Tirana e passou a ler, diariamente, a Folha de São Paulo. E foi nas páginas do diário paulista que, na manhã de 17 de dezembro de 1976, se deparou com a notícia da queda da Lapa, as fotos do massacre, os camaradas trespassados por balas, episódio que, mesmo com a rolagem do tempo, nunca deixou de lhe arrancar lágrimas quando mencionado.

Oito meses após a chacina, Jamil foi recontatado pelo Partido, ingressou no Comitê Estadual e, junto com seus camaradas Aurélio Peres, Pedro de Oliveira, Ana Martins, Vital Nolasco e Walter Sorrentino, entre outros, entregou-se à tarefa de reconstruir a organização partidária e buscar ligações com o movimento social. A missão começou em bairros da periferia, com Jamil e um grupo de médicos recém formados atendendo o povo desassistido, fazendo palestras e reunindo lideranças. Estavam plantadas as sementes do que viria a ser, logo em seguida, o forte movimento contra a carestia, propulsor de uma nova reação popular à ditadura.

Em 1978 Jamil passou a integrar a diretoria do Sindicato dos Médicos de São Paulo, ao qual se filiara dois anos antes, pelas mãos de Júlia Roland, com quem mais tarde se casaria.

Formada em Medicina pela Universidade Federal de Goiás (UFGO), em 1973, filiada ao PCdoB desde o início de 1979, a maranhense Júlia Maria Santos Roland sempre articulou o exercício da profissão com a militância política. No ambulatório médico da fábrica da Philco, no Tatuapé, por exemplo, atendia as operárias e as convidava para a luta sindical e para o partido. A Tribuna da Luta Operária, que vendia em portas de fábricas e no próprio HSPE, foi instrumento valioso.

Com o direito à sindicalização do servidor público, assegurado pela constituição de 1988, ajudou a criar o Sindicato dos Trabalhadores Públicos de Saúde do Estado de São Paulo (Sinsaude), passando a atuar nesse segmento. Presidiu por duas gestões a Associação dos Funcionários do Instituto de Assistência Médica do Servidor Público Estadual (Afiamspe), participou da direção da Confederação Nacional da Seguridade Social (CNTSS) e representou a CUT no Conselho Nacional de Saúde, de 1998 a 2004.

Desde 1988 integra a direção do PCdoB de São Paulo e também a da capital, que presidiu de 2002 a 2009. Em 2001 foi eleita para o Comitê Central,. No início de 2012, atuava no Ministério da Saúde, como Diretora do Departamento de Gestão Participativa.

No Sindicato dos Médicos Jamil inaugurou uma atuação no movimento sindical que o acompanharia pelos próximos 12 anos. Como sindicalista estabeleceu contato com os sindicatos operários, em particular os metalúrgicos, onde prosperava a liderança de um torneiro esperto, capaz e carismático: Luiz Inácio da Silva, o Lula. Jamil seguiu avante. Estava na organização do I Conclat, na formação da Corrente Sindical Classista, que atuou primeiro na CGT, depois na CUT e, por fim, alimentou a constituição, em 2007, da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).

Em novembro de 1979, coube-lhe hospedar o dirigente comunista João Amazonas, recém chegado do exílio. Por três meses Jamil pode testemunhar, como aprendizado e com admiração, o cotidiano do velho revolucionário, o acordar cedo, o trabalhar metódico, a disciplina de horários, a inteira compenetração na liderança do partido e na lida revolucionária. Acompanharia Amazonas até seus últimos dias, em maio de 2002.

Nas eleições de 1990 a longa trajetória de lutas de Jamil converteu-se em votos. Foi eleito deputado estadual e reeleito em 1994 e 1998. Em 2002 foi conduzido à Câmara Federal. Em 2008 tornou-se vereador. Próximo dos 70 anos de idade, não dá mostras de se aposentar. Orgulha-se, em 44 anos de medicina, de jamais ter cobrado consulta, pois sempre ligado ao sistema público de saúde. E de peripécias que fortaleceram seu currículo de militante exemplar. Era comum ir para as portas de fábricas, madrugada ainda, desafiando a ditadura, para levar a palavra do partido através da Tribuna da Luta Operária. Toda a semana percorria os 15 andares do Hospital do Servidor, em São Paulo, sobraçando 200 exemplares do jornal. Vendia todos.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor