Gregório de Matos, séculos de polêmicas

O mundo que se apresenta ao poeta Gregório de Matos na segunda metade do século XVII é um mundo em transição, no qual se vão entrelaçar características de um tempo que se afasta, e que não voltará, e de outro, que se instaurará por um longo período da cultura ocidental.

O tempo que se afasta é aquele anterior ao das grandes navegações, regido pelos ciclos das colheitas e pelo deslizar das estrelas no céu, tempo em que a ligação estreita com a terra conferia ao homem um sentimento de pertença, segurança e de equilíbrio do universo em face de uma aparente imutabilidade de tudo.

O tempo que dá sinais de sua chegada anuncia-se primeiro na Europa, e paulatinamente se vai estendendo pelo globo à medida que o comércio marítimo se intensifica e que as nações européias em melhores condições aceleram seus projetos de colonização da América, da África e da Ásia.

O tempo que será definitivamente superado refere-se ao que a história convencionou chamar Idade Média, e o tempo que já cruzou o horizonte e convive com a resistência da contra-reforma é a era de predomínio do capital que, dos estágios inicias da acumulação comercial, atingirá a fase financeira ao final do século XIX, tendo passado pelas convulsões globais decorrentes da revolução industrial, cujo epicentro foi Inglaterra com sua Londres afogada na fumaça das chaminés das fábricas movidas a carvão, e da revolução social e política burguesa, representada pelas conflagrações da França de 1789.

Gregório não verá os iluministas franceses “enviarem Deus de volta a céu”, nas palavras de Sarte, mas terá oportunidade de participar do turbilhão ideológico característico da época, em que a reação católica ao projeto renascentista assumirá contornos de disputa generalizada no campo da fé, mas principalmente nos campos filosófico, político e estético.

O tempo que envolve o poeta baiano, do início de sua juventude à sua morte, é uma encruzilhada na qual a Inquisição, mais agressiva em seus estertores, rivaliza com uma cultura laica que vai germinando e ganhando espaço na Europa por sob as disputas religiosas entre católicos e protestantes.

Numa evolução contraditória e desarmônica, os diversos projetos coloniais com sede no território europeu refletem maior identidade com a nova era do capital ou maior distanciamento em face das transformações que já estão em curso e que se operarão de maneira vertiginosa a parir do século XVIII.

No caso das nações ibéricas, na proporção das opções realizadas pelos respectivos governantes, as concepções medievais de mundo agiram com um pesado fardo, cujas consequências implicaram em sério descompasso em relação ao desenvolvimento das demais nações européias.

Estudante de direito da Universidade de Coimbra, Gregório de Matos foi mergulhado na escolástica neoplatônica, cujo primado da fé sobre a razão, defendido por Santo Agostinho, estava ainda aquém das formulações de Tomás de Aquino, o qual, ao introduzir elementos de Aristóteles nas formulações católicas, aliviou-a um tanto de sua carga conservadora e excessivamente moralista.

Porém, uma coisa eram as aulas na Universidade, outra era a vida dos estudantes, entre os quais Gregório, que, com sua fama de repentista e músico habilidoso, reinava como um menestrel algo medievo, cujas paródias e improvisos faziam a alegria dos colegas de turma e a dor de cabeça dos docente, vítimas das troças relatadas por seus biógrafos – por mais que sua biografia seja lacunar, duvidosa e mesmo improvável, nalguns casos.

Em Coimbra, um pé na doutrina agostiniana das classes de Direito assimilada compulsoriamente, e outros nas tunas estudantis farristas e edonistas, Gregório incorpora a condição do intelectual da época, dividido entre uma doutrina que professa a imutabilidade das coisas e um mundo que se vê e se sente em tumulto e transição, um mundo em permanente desequilíbrio.

Na poesia de Gregório, até o fim, essas dimensões radicalmente opostas se desafiam, sem resultarem quer em exclusão mútua, quer em síntese, ainda que transitória. Em sua obra conviverão os poemas para as prostitutas do cais e aqueles de compungida devoção a Deus, nos quais o perdão é buscado a custo de retórica arguta, de técnica literária segura e de um, acusam os críticos, elevado sentimento de culpa, engenhosamente urdido por versos cheios de jogos de palavras em que não faltam volutas e esmero.

Sua permanência em Lisboa por longo período, após breve retorno à sua Bahia, o colocará, agora a condição de juiz de Direito, em contato com um outro Portugal, diferente daquele da vida universitária em Coimbra. A corte, com suas novidades aburguesadas e com seu cosmopolitismo de periferia européia, alargará suas experiências e mais ainda sua sensibilidade, a qual, no entanto, revelam seus poemas, jamais se desprenderá da base religiosa profundamente moralista de seus anos de juventude.

Essa longa permanência em Lisboa será responsável pela consolidação de sua formação intelectual, pelo seu sucesso enquanto homem do Direito e também por sua decadência.

Ainda que a corte lusitana fosse por essa época uma capital periférica da Europa, por lá circulavam, ainda que sob o crivo da censura inquisitorial, o que de mais moderno – e permitido – havia na época. Metrópole de um vasto sistema de colônias espalhado pela Terra, e se refazendo do período de domínio espanhol, Lisboa oferecia àqueles no Império voltados para as letras o que de mais dinâmico havia em termos de vida intelectual.

Ter caído em desgraça com Pedro II de Portugal e retornar ao Brasil derrotado, assim, significou para o poeta baiano um destino de poucas venturas e muitos dissabores, que não cessarão de aumentar ao longo dos anos em função de suas desavenças com os governantes e mais ainda de sua língua ferina, que lhe valerá a alcunha de Boca do Inferno até nossos dias.

Se as paródias e sátiras em versos já em Lisboa produziram seus estragos – que foram tolerados mais pela posição de juiz desfrutada do que pelo acolhimento nunca unânime, particularmente da parte dos afetados diretamente por elas –, mais ainda tiveram impacto na colônia, em que a vida intelectual se limitava à parca burocracia voltada para a coleta de impostos e à ação dos religiosos, com os quais Gregório se vai indispor e aos quais vai atacar com virulência igual, senão maior, à devotada aos governantes dos quais se torna desafeto e tormento.

Agradeça-se, assim, à indisposição da corte lisboeta em tolerar Gregório-jurista-político, descomprometido com Pedro II de Portugal, o questionadíssimo surgimento da literatura brasileira, na pessoa do seu mais questionado e controvertido poeta.

De volta à Bahia, à medida que Gregório se vai indispondo com o meio intelectualmente restrito, representado em última instância pelos governantes – principalmente o governador Câmara Coutinho – e pelo clero, vai firmando sua fama de amante da capoeira, da boêmia e rodas populares, do repente, do lundu – do qual, segundo Nelson Werneck Sodré foi uma espécie de rei – e das mulatas do cais.

Esse mesmo menestrel erudito, que aportou na colônia com o cargo de vigário geral garantido, caído aqui também em desgraça, passa agora a peregrinar com sua musa irônica, maledicente e paródica por tavernas, fazendas e sítios, a semear sua produção acérrima, que circulará oralmente entre risos e galhofas.

Tanto Nelson Werneck Sodré quanto o professor Segismundo Spina, ao tratarem do poeta baiano, chamam a atenção para a situação de insulamento intelectual vivida por Gregório de Matos em face da praticamente inexistente vida intelectual brasileira daquele período. Proibida a imprensa, restrito o embrionário sistema de educação as meios religiosos voltados para a catequese e vetada a interlocução com a burocracia dirigente em função mesmo das indisposições referidas, restou ao poeta voltar-se para os meios populares e boêmios – os quais nunca lhe foram alheios –, cuja cultura eminentemente oral lhe garantia o menos, ainda que de forma miserável, existência enquanto indivíduo e enquanto artista.

Concordando com aqueles que apontam a obra de Gregório como o ponto inicial da literatura brasileira – caso, por exemplo, de Haroldo de Campos de “O sequestro do barroco na ‘Formação da Literatura Brasileira’” – considero que a obra do poeta baiano decorre de duas mortes: a primeira, quando de sua partida definitiva de Portugal por razões políticas; a segunda, quando de sua recusa de acomodação aos molde limitados da elite baiana da época, em relação à qual se sentiu desconfortável e inadaptável.

Quando morreu o juiz de Direito lá e o membro da elite aqui, restou para nossa sorte o menestrel polêmico, cuja obra, disputada e rejeitada por portugueses e brasileiros, não cessa de se oferecer como campo de discussão nem sempre e quase nunca cordial.

A professora Maria de Lourdes Teixeira, na linha do professor Spina, em sua biografia “Gregório de Matos”, destaca o papel exercido pelo governador substituto de Câmara Coutinho, dom João de Lencastro, o qual, admirador do poeta, disponibilizou no palácio do governo meios para que o público fizesse registrar os poemas de Gregório em circulação por época de sua administração. Dessa coletânea apógrafa derivaria, segunda a autora da biografia, a profusão de textos atribuídos indevidamente ao poeta, que em algumas ocasiões talvez os interpretara em público sem contudo se autor deles – muitos dos quais constantes da coleção organizada por James Amado no ano de 1969.

Esse ‘corpus’ literário, polêmico como o poeta que se constituiu a partir de manuscritos apócrifos e que não parou de crescer desde o século XVII, foi objeto de estudo de importantes eruditos, entre os quais Sílvio Romero e José Veríssimo, cada qual e sua respectiva “História da literatura brasileira”, o primeiro, reconhecendo no poeta baiano o fundador de nossa literatura, o segundo rejeitando-o e agrupando-o inclusive com os espanhóis, em razão de atribuir a eles a propriedade do barroco praticado por Gregório – polêmica que evolverá no século XX outros eruditos, entre os quais além dos já citados, Afrânio Coutinho, considerado pelo professor Alfredo Bosi um especialista do Barroco.

Amado e rejeitado, a depender dos pontos de vista, os poemas de Gregório e aqueles a ele atribuídos são de diversa natureza, e têm sido grupados segundo os pontos de vista adotados por críticos, historiadores e teóricos.

De um determinado ponto de vista temático, há que os classifique da seguinte maneira como líricos, sociais, fesceninos (ou simplesmente pornográficos), satíricos, religiosos, filosóficos e encomiásticos (de homenagem). Outros pontos de vista realizam outras formas de classificação, mais, ou menos, distante da aqui citada, nenhuma sendo necessariamente excludente, uma vez que o poeta baiano foi um verdadeiro polígrafo: suas sátiras são verdadeiras crônicas de costumes, algumas de suas composições populares são verdadeiros romances, no sentido medievo, assim como alguns de seus sonetos são perfeitas paródias, como na que Gregório de Matos mete sua colher entre o Padre Vieira e seu irmão, Bernardo Vieira, que, trocando, sonetos entre si, jamais sonharam com o triângulo formado com a intervenção do Boca do Inferno.

James Amado, no prefácio ‘A foto proibida há 300 anos’ à coleção “Obras completas de Gregório de Matos – Sacra, Lírica, Satírica, Burlesca”, por ele organizada a partir da pesquisa em 25 códices manuscritos dos séculos XVII e XVIII e em obras do licenciado Manuel Pereira Rabelo e de Araripe Jr., faz a defesa do poeta baiano como iniciador de nossa literatura, apoiado no argumento de distanciamento do poeta em relação barroco espanhol vigente e de manifestação de identidade brasileira em sua obra, em diferenciação da portuguesa, pela incorporação da fala e da cultura popular, características das camadas pobres e marginalizadas da população às quais Gregório se voltou e às quais refletiu.

Sua defesa, como não poderia deixar de ser em se tratando do Boca do Inferno, expressa indignação em relação à crítica que ou ignora, ou combate ou exclui a poesia gregoriana do cânone literário brasileiro. Não por acaso, o poema que inicia essa vasta coleção e aquele em que o próprio poeta anuncia sua conversão ao popular:

“Cansado de vos pregar
Cultíssimas profecias,
Quer das culteranias
Hoje o hábito enforcar.”



Concordemos ou não com o insigne pesquisador, a quem se deve o esforço de reunião da poesia gregoriana, em letra impressa, de modo tão abundante, o fato é que não se pode tratar da origem da literatura brasileira sem se recorrer a essa obra que, reunida desde 1969 em 7 volumes e 1800 páginas muito bem cuidadas, é sementeira de polêmicas infernais, e que em nossa literatura se desdobra, em termos de língua ferina, obras como as de Oswald de Andrade e Stanislaw Ponte Preta, para ficarmos apenas em duas citações do próprio James Amado em seu prefácio.
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