Aluísio Azevedo: a palavra dura para a realidade dura

O final o século XIX encontra a cena literária brasileira vazada por diversas formas de fazer artístico que ora se comunicam sem maiores atritos, ora se confrontam acidamente nas páginas dos livros ou da imprensa periódica de época.

Enquanto o romantismo, insuflado pela obra de Castro Alves e prosseguindo modalizado na primeira fase da obra de Machado de Assis, dá mostras de esgotamento, o realismo e o naturalismo, embalados pela recepção de obras como as de Eça de Queirós e Emile Zola, Taine, Sterne entre outras, e pela repercussão do evolucionismo de Darwin, insinuam-se no cerne mesmo da produção romântica.

No Brasil, especialmente na prosa ficcional, a transição da escola romântica declinante para as novas formas realistas e naturalistas, a que José Veríssimo chamava “modernas”, comparece no âmbito da obra de autores que paulatinamente migram de uma a outra, quase sempre guardando resquícios daquela de onde partem.

Sílvio Romero, para afastar a hipótese de confusão que o termo “realismo”, que em filosofia tem significados diferentes daqueles que assume em literatura, prefere fixar o termo “naturalismo” para a produção artística voltada para a crítica social e para a representação literária apoiadas na observação científica da natureza.

Porém, tanto termo “realismo” quanto o termo “naturalismo” serão empregados no Brasil para descrever e classificar obras e estilos literários distintos, o primeiro, associado à segunda fase da obra de Machado de Assis; o segundo, à obra de Aluísio Azevedo, identificado, a partir da publicação de “O mulato”, como introdutor em nossas letras desse estilo e escola.

No caso de Aluísio Azevedo, diferentemente de Machado de Assis, cuja obra romântica é abundante, a produção naturalista cedo decorre de sua ruptura com o romantismo – embora tanto em “O mulato” quanto em “O cortiço” traços da estética românticas sejam observados nitidamente, mesmo sem análises mais aprofundadas – principalmente no primeiro.

Se essa migração de estilos no interior da obra de um mesmo autor está longe de ser novidade na Europa dessa época de transição, mais ainda ocorre no Brasil, que, pela posição periférica ocupada na geopolítica cultural desse final de século XIX, assiste à justaposição de modismos literários, uns a encavalarem-se sobre outros, nas páginas da imprensa liberal nascente, todos com atrasos muito além daqueles devidos aos paquetes, que uma ver por mês, na melhor das hipóteses, atracavam na Bahia, no Rio de Janeiro ou em Santos, portanto a crônica da vida cultural européia.

De todo modo, em que pese esse descompasso cultural que durante os séculos XIX e XX marca as relações do Brasil com a Europa, é de se considerar de grande importância o evento de obras como as de Aluísio e Machado ocorrerem tão próximas no tempo daquelas praticadas na Europa sob a lógica do cientificismo vertido para a literatura. Afinal, os eventos históricos que convulsionaram Alemanha, Inglaterra, Itália e principalmente França, na qual a Comuna de Paris ocupa o centro das discussões sociológicas até os dias de hoje, e que impulsionaram obras como as de Zola e Flaubert , têm natureza muito diversa daqueles que por aqui dominam a realidade política e social, ainda atada às correntes da escravidão negra.

Se o naturalismo na Europa tem fortes bases históricas, políticas e científicas, o mesmo não ocorre por aqui nesse período. Longe disso, nessa segunda metade do século XIX que caminha para seu final, as condições que mais legitimamente engendraram o naturalismo por lá estão apenas em seus estágios germinativos no Brasil.

Em que pese o impacto global que tiveram o evolucionismo darwinista, o positivismo e o determinismo científico, cuja difusão foi favorecida pelas revoluções nos meios de transporte e comunicação, os quais alteraram significativamente a velocidade dos contatos culturais materiais e simbólicos, o epicentro dessa revolução geral, que envolveu ciência, filosofia e artes, foi inequivocamente a Europa, mais especificamente a Europa não ibérica.

Se no velho continente as descrições literárias à beira da escatologia ou totalmente mergulhadas nela encontravam solo legítimo nas insalubres minas de carvão, no interior e em torno das quais proliferavam a miséria aguda; ou nos becos infectos de uma Londres afogada em neblina, fumaça e fuligem das chaminés das fábricas movidas pela lenha das últimas florestas inglesas existentes, aqui a situação é diversa. O pensamento de Prudhon e de Marx que iam chegando no Brasil pelos paquetes atrasados não encontravam o agente social ou base nas relações econômicas e de classes que os motivaram.

No caso de Aluísio Azedo, a quem já chamaram de marxista, como traduzir em literatura brasileira as denúncias lidas nos romances naturalistas franceses, se estes representavam contradições entre capital e trabalho que ficavam secundarizadas e encobertas, aqui, pelas relações escravistas e pelo patrimonialismo cartorial que, nas palavras de Darcy Ribeiro, herdamos dos portugueses juntamente com a sífilis?

Mesmo em se considerando o romance “O mulato”, cujo herói Raimundo, filho de escrava negra e senhor branco, é representado como mulato claro e de olhos azuis – romance apontado por José Veríssimo como pleno de fraquezas – mesmo no caso desse romance, dizia, há que se considerar com espanto o sucesso de público, admitido pelo próprio José Veríssimo, a despeito o dado provinciano do enredo e das incongruências frutos de um romantismo ainda não de todo abandonado e de um naturalismo ainda não de todo desenvolvido criticamente pelo autor.

Credita-se a “O mulato” o ponto inicial do naturalismo em nossa literatura muito em função da necessidade, hoje bastante questionada, de se apontar, na esfera da história literária, marcos fixos e demarcadores de períodos. No mais das vezes, não se vai além desse elogio ao livro que, em sua época, conquistou grande parcela de público, e que não deixou de significar uma ousadia frente à realidade em que escravidão, monarquia e atraso nas relações econômicas e políticas se mesclavam para dar corpo a uma vida espiritual cujo cosmopolitismo não ia além do pouco verniz cultural importado, a circular quase que exclusivamente na corte.

A história do amor ilícito de um homem branco por uma escrava negra e – mais que isso – do adultério da esposa branca desse homem com um sacerdote sínico e corrupto, que lhe providencia a morte (e depois a de seu próprio filho, “mulato claro” de olhos azuis”, com escrava), terá causado escândalo e pode ser mesmo considerada um tanto rocambolesca, porém, quanto dessa mesma natureza escandalosa – Flaubert foi também acusado disso, e respondeu a processo, sentado no banco dos réus ao lado de sua personagem emblemática, Emma Bovary – não se deve à reação que a denúncia em forma de romance causou na parcela do público e da sociedade para os quais a obra orientava sua crítica?

Ou ainda, quanto da indignação de parcela do público não está associada ao falso-moralismo que, no projeto literário naturalista, é alvo a ser exposto por meio do espetáculo da palavra?

Se o final do romance, atendendo à estética de Emile Zona, à qual Aluísio se vincula reconhecidamente, afigura-se postiço e compensatório do enredo romântico que enlaça Raimundo e Ana Rosa, quanto dessa estranha incongruência não se deve a uma inexistente sociologia científica brasileira que servisse de base para o escritor maranhense?

Sob esse ponto de vista, ganha relevo esse primeiro esforço de Aluísio Azevedo, que busca registrar pelo ângulo da literatura, ajustado pela crítica social e pelo naturalismo literário europeus, uma realidade em que se emaranham um capitalismo incipiente, escravismo e rural atrasada – mesmo em relação a seus pares da América do Sul, tais como Argentina e Uruguai.

Enquanto “O mulato” recebe ainda hoje mais restrições do que elogios da crítica, muito embora os ganhos econômicos proporcionados por esse romance ao autor não deixem dúvidas quanto a seu sucesso junto ao público – tão habituado às mocinhas de aos mocinhos e Alencar –, o próprio Aluísio é alvo de senões, em razão de ter escrito obras de feitio comercial no mesmo período.

Para Aluísio Azevedo, tanto quanto para todo escritor brasileiro após o romantismo, o problema da sobrevivência pelo exercício da profissão de escritor se impôs.

Questão não resolvida nunca em definitivo, o vínculo entre escritor e público é um evento provisório, que proporciona, nas condições atuais como nas de antanho, plena liberdade e conforto ao segundo, e total dependência e instabilidade ao primeiro.

Aluísio, sabe-se, tentou equacionar o problema no âmbito do exercício da profissão de escritor de forma pendular, ora ajustando seu projeto literário ao gosto médio da época, do que resultam histórias folhetinescas e de apelo comercial, ora empenhando-se em pesquisas de linguagem, das quais resultam textos mais consistentes, porém de menor alcance em termos de público de época.

Fez certo? Fez errado? O fato é que, mesmo autor de sucesso, não logrou estabilidade na profissão de escritor, e abandonou as letras pela diplomacia – e ainda bem que só o fez após ter publicado “O cortiço”, seu maior sucesso, inclusive comercial, fruto de esforços intelectuais dispendiosos e de laboriosa pesquisa estética com interface na sociologia científica da época, importada e tão marcada pelo evolucionismo, pelo positivismo e pelo determinismo.

Nesse romance, o anticlericalismo militante de "O mulato" é posto de lado, porém assumem relevância a crítica social, caricaturada no oportunismo de João Romão; o escárnio do falso moralismo, representado no adultério em que Jerônimo e Maria Rita se envolvem sem remorsos; e o libelo profundamente democrático e antiescravista, representado no verdadeiro harakiri cometido pela negra Bertoleza, em repúdio ao retorno à condição de escrava.

A crueza das descrições e a franqueza da linguagem também são alvos ainda hoje, como o foram na época da publicação do romance, de fortes restrições de setores conservadores da crítica cevada pelo beletrismo.

Se essa oposição se deve à escrita de Aluísio – e é impossível que em qualquer autor ou obra não ocorra oscilações, maiores ou menores, a depender do ponto de vista –, deve-se ainda mais a sua opção estilística, que responde francamente a um projeto literário de engajamento do autor no tratamento de temas sociais a partir de uma pesquisa temática e de linguagem não preconceituosa, a qual, por um lado, legitima o falar dos referentes sóciais que suas personagens representam e, por outro, aceita o desafio de penetrar as áreas proibidas do idioma, reputadas pelo beletrismo como indignas da “boa literatura” – com se o “bom” e a “literatura” fossem conceitos absolutos.

Os requebros libidinosos de Maria Rita são descritos pelo narrador de “O cortiço” de forma direta e com vocabulário inequívoco. A falta de caráter, ou antes, o caráter burguês e cabotino de João Romão é descrito a partir de sua lógica interesseira e desumana, que, não percebida por Bertoleza, lhe destruirá a própria razão de viver, uma vez que a pobreza lhe é aceitável, mas o retorno à escravidão, não.

A cena da primeira menstruação de Pombinha é descrita de forma tão plástica que o leitor se vê instado a pôr entre parênteses esse trecho do romance. Nele, o narrador converte o leitor em público de artes plásticas, concretiza em seus olhos imagens plenas de cromatismo, embute o leitor na visão e no corpo da própria menina, cujas sensações físicas são perturbadas pelo transbordamento do fenômeno biológico e psíquico que a converte de menina em mulher.

Após a leitura desse trecho do romance, aqueles desprovidos de preconceitos sociais, linguísticos e culturais se perguntam a razão de as funções bio e fisiológicas da sexualidade humana serem alvo de severas interdições na literatura e nas artes ainda nos dias de hoje.

Principalmente nesses dois romances Aluísio Azevedo opera duas dificílimas tarefas do escritor brasileiro: a primeira, a de sintonizar nossa literatura com o movimento geral da literatura no Ocidente, da qual a literatura brasileira faz parte de maneira contraditória; a segunda, talvez muito mais complexa, a de perseverar no aprofundamento e na ampliação da pesquisa constitutiva da língua literária brasileira que desde Gregório de Matos, o “Boca do Inferno”, não rejeita nem o falar da corte, com seus maneirismos fora de lugar, nem o das mulatas prostituídas por essa mesma corte, de antes e de agora – falar no qual estão registruados a injustiça social, a violência contra os mais pobres e o cinismo de uma elite de pulso de renda limpo, de alma suja e consicência pesada.

Essa pesquisa ampla de Aluísio Azevedo, da distância que este ano de 2010 proporciona, encontra eco na chamada Geração de 30 de nossa literatur. Curiosamente, os senões levantados contra certos autores dela são muitíssimos semelhantes àqueles orientados à obra de Aluísio Azevedo.

“Menino de Engenho”, de José Lins do Rego, tem trechos que causam arrepios a certo tipo de crítica conservadora ainda hoje, que prefere falar do "mau gosto" de certa passagens do que assumir que o que incomada é a realidade retratada.

“Capitães de Areia”, de Jorge Amado, foi queimado pela ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas e continua, ainda nesta década, a ensejar ações do Ministério Público, tangido por mentes retrógradas, a envolver-se na cruzada falso-moralista pela eliminação desse livro do currículo da escola pública.

A obra do escritor maranhense tem eco, na Geração de 30, pois sim, mas não apenas. Quem, tendo lido “O cortiço”, não vê irmandade entre esse livro e obras de Nelson Rodrigues, Plínio Marcos, Rubem Fosenca, Hilda Hist e mesmo Ferrez, de “Capão Pecado”, entre outros?

A palavra dura para a realidade dura reflete as opções estéticas e ideológicas de autores que ousaram incorporar em seus projetos literários agentes sociais relevantes, preteridos da literatura porque preteridos no momento da divisão da riqueza por eles mesmos produzida.

Sob esse aspecto, ao vincularem suas obras a agentes sociais discriminados e estigmatizados, os autores que assim optam tornam-se vítimas também dos mesmos preconceitos que recaem sobre esses setores – e na proporção que esses setores avançam em suas lutas e conquistam mais espaços existenciais, institucionais e simbólicos, também os autores que buscaram lhes dar voz são redimidos.

Haverá tempo em que Plínio Marcos, João Antônio e os poemas “tarja preta” de Gregório de Matos serão estudados sem sobressalto na Educação Básica escola pública. A distância a ser percorrida para que esse tempo chegue é aquela correspondente à das vitórias e fracassos das classes populares brasileiras.



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