“Viver é fácil com os olhos fechados”, outros tempos

Filme do cineasta espanhol David Trueba refaz percurso de John Lennon para analisar o comportamento da juventude de seu país sob o franquismo.

Pouco importa se as causas do encontro do quarentão Antonio San Román e os adolescentes Belén e Juanjo, neste “Viver é fácil com os olhos fechados” não fiquem explícitas desde o início. Cabe ao espectador ligar o ocorrido nas sequências iniciais com os dois jovens para entender porque embarcam no velho carro verde, para uma viagem de Albacete a Almería, na Andaluzia. Suas razões, no entanto, são ditadas mais pelo inconformismo libertário dos anos 60 e a ditadura franquista (1939/1975), que pessoais.

Através deles, o cineasta e roteirista espanhol David Trueba sintetiza a ação dos personagens na narrativa. Belén (Natalia de Molina), com sua simpatia e firmeza, disposta a discordar da maneira como Román (Javier Câmara) tratou Juanjo (Francesc Colomer) por gostar do Stones, é a garota cheia de impasses. E Juanjo, de cabelo à Beatles, enfeixa a inquietação da juventude ao reagir às imposições do pai, Modesto (Jorge Saenz), diante dos irmãos pequenos, em pleno jantar.

Assim, Trueba foge ao rito de passagem, tão comum neste tipo de filme, em que a independência do/a jovem se dá por meio da dor, da culpa, da frustração, enquanto adquire experiência e amadurece. Ele apenas os mostra se unindo a Román, professor de inglês, fã dos Beatles, pois seus motivos foram tratados em sequências anteriores. Enquanto Román quer se encontrar com John Lennon, que em 1966 filmava “Oh, que delícia de guerra” numa praia de Almería, sob direção do estadunidense Richard Lester (Bossa da Conquista, 1965).

Clima libertário ditava a época

No entanto, quando eles se encontram com Román, a perda da inocência e a entrada no mundo adulto já havia acontecido. Trueba apenas desvenda suas consequências e a maneira como ambos reagem a seus atos. Como a maioria dos jovens dos anos 60, eles se emanciparam cedo. Numa conversa entre Belén e Juanjo, ela lhe diz: Não quero que ninguém decida por mim. Ao que ele responde: “Ninguém pode te obrigar a nada”. Este era o clima libertário na época.

Trueba não dramatiza a precoce gravidez de Belén, tampouco a enche de culpa. Trata-a sem condescendência. Ela não lamenta o que fez, nem se investe contra a mãe, quer só viver a seu modo. E usou seu tempo no reformatório, onde vivia sob feroz repressão, para se tornar cabelereira. Há aqui a mescla de independência financeira, consciência de seus atos e emancipação feminina. Com Juanjo tudo se resume à sua rebeldia, os cabelos longos, e à mutação em jovem artista, como desenhista.

Já Román se equilibra entre os dois, ajudando-os a superar inseguranças, fortalecer sonhos, descobrir suas qualidades, evitando que se fragilizem. Porém, Trueba o destitui do comando, de ditar normas, eles também o influenciam, o ajudam a superar os obstáculos para ele se encontrar com Lennon. E ainda atentar para os perniciosos ditames franquistas a si entranhar nas estruturas sociais e de classe do país. Porém, muitas vezes os assiste em seu cotidiano sem qualquer reação.

Adeptos repete atos do ditador

Deste modo, Trueba não mostra os atos do ditador Francisco Franco (1892/1975), os substitui pelo tapa do padre no aluno; a diretora do reformatório a expulsar a desesperada mãe, que clama pela devolução do filho; o violento tapa de Modesto em Juanjo; as agressões do cultivador de morango ao mesmo Juanjo, por usar cabelos compridos; a rancorosa autoridade de que se investe o policial ao impedir Román de entrar no set de filmagem em que está Lennon. Assim, a violência dos que encarnam Franco se torna tão cruel quanto se partisse dele próprio.

Entretanto, Román foge a este espectro. Contemporizador, dá aula de inglês analisando música dos Beatles. É dele a resposta à sanha preconceituosa contra Juanjo. Após discutir com o cultivador de morangos, sai em seu carro, mas volta irado. E passa por cima da plantação, destruindo canteiros à vista do desesperado franquista. Seu inconformismo antes silencioso termina sendo tão contundente quanto o outro merecia.

Daí emana a complexidade deste drama aparentemente simples, estruturado por Trueba como filme-de-estrada, road-movie, em planos-sequências e grandes planos, fazendo interagir personagens, narrativa e ambiente. E, sobretudo, em andamento aparentemente lento, dando ao espectador tempo para absorver intenções e clima. Centrado em três personagens-agentes dotados de criatividade, transmite solidariedade e companheirismo e reforça a visão do coletivo, não do individualismo.

Mas, além de tudo, o filme é impulsionado pela visão síntese de John Lennon (1940/1980), de que o sonho é, e continua sendo, possível. A elipse de Trueba, no desfecho, sem nostalgia, contribui para o espectador entender o objetivo de Román. Trata-se de mais de que um gesto. E se confirma na letra de Strawberry Fields Forever (1966): Viver é fácil com os olhos fechados/ Sem entender tudo o que você vê/ fica difícil ser alguém/Mas tudo funciona bem/ Não me preocupo muito com isso. Trueba sintetiza uma época.

“Viver é fácil com os olhos fechados”. (Vivir es Fácil com los Ojos Cerrados). Drama. Espanha. 2013. 109 minutos. Música: Pat Metheny. Montagem: Marta Velasco. Fotografia: Daniel Vilar. Roteiro/direção: David Trueba. Elenco: Javier Câmara, Natalia de Molina, Francesc Colomer, Jorge Saenz.

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