“Perdido em Marte”, batatas e gambiarras

Cineasta britânico Ridley Scott equilibra suspense, cooperação entre nações e politicamente correto neste thriller sobre resgate intergaláctico.

Não à toa, as fórmulas usadas pelo biólogo-astronauta Mark Watney (Matt Damon) fazem germinar batata adubada numa estufa em Marte, combinando métodos evolucionistas e luta pela sobrevivência neste “Perdido em Marte”. As oscilações atmosféricas, no entanto, não o permitem concluí-los a contento. Mas são o bastante para o cineasta britânico Ridley Scott (Telma & Louise, 1991) e seu roteirista Drew Goddard, numa adaptação do livro homônimo do escritor Andy Weir, o transformar num herói espacial.

Sua tarefa é desafiadora. Exige navegar por inexplorados espaços do cosmo, seguindo complexas órbitas até chegar ao planeta-alvo e retornar seguindo rotas milimetricamente fixadas. E ainda resistir à ausência de oxigênio, às mudanças atmosféricas (143°C no inverno e até 35°C no verão) e à aridez de planícies, montanhas e crateras. Seu teste se dá quando tempestades de areia obrigam a comandante da missão Melissa Lewis (Jessica Chestain) e seus quatro companheiros a abandoná-lo.

A viagem de ida e volta à Terra, distante de 55.76 milhões a 360 milhões de quilômetros, dura de seis meses a um ano, dependendo da inclinação do planeta em relação ao sol. Este é, em suma, o dilema de Watney. O de Scott é transformar sua história num filme de ficção-científica, cheia de mistério, estranhos ambientes e ciências e tecnologias futurísticas. Nada disso ocorreu, ele optou por torná-lo um thriller, cuja ação é ditada pelo suspense.

Marte é puro enigma

Tudo do isto se passa na primeira parte do filme, com Watney sozinho no planeta inóspito. Afinal, Marte é puro enigma, decifrá-lo seria encontrar água líquida e outras formas de vida, ainda que bactérias. Então, Scott cai na armadilha das últimas “ficções-cientificas”. Divide a narrativa em três seguimentos: I – Watney em Marte; II – Lewis e sua equipe no espaço, III – Centro de Controle da Nasa. E amarra-os até o previsível desfecho.

Se a primeira parte faz o espectador imaginar como será a colonização de Marte, com os terráqueos vivendo em finas e resistentes estruturas, ligadas a infindáveis tubulações nas quais se deslocam sobre esteiras, a segunda está sob o comando da central de Nasa, na Ilha Merritt. Tanto a comandante Lewis quanto a tripulação se sente culpada pelo que aconteceu a Watney. E quer, de qualquer forma, resgatá-lo. Funciona como esteio da narrativa e do suspense, que matizam personagens e ação condensada.

Mas é na terceira parte, centralizada no Comando-Geral da Nasa, que a ciência se submete à política para traçar o plano de resgate de Watney. Não se trata mais de agir sozinha. Seus diretores se desdobram para integrar especialistas das mais diversas nações, para o sucesso das missões. Agora, porém, é diferente. O diretor-geral Teddy Sanders é obrigado a ceder à sugestão do indiano Vicent Kapoor (Chiwetel Ejiofor), responsável pela missão, de integrar ao resgate o Centro Espacial Chinês.

Resgate se torna missão conjunta

Tal integração poderia significar a participação chinesa na missão de colonização internacional, direito de todas as nações. Iriam dividir pesquisas científicas e exploração econômica de magnésio, sódio, potássio e cloro, além de uma base espacial em Marte. Entretanto, ela se restringe ao uso de base, sob o comando da Nasa. O importante aqui nem é a colaboração de outras nações, mas a aceitação da supremacia dos EUA na exploração do Cosmo. Não à toa a apoteose nacionalista do resgate.

A forma como Scott o conduz não foge a fusão de thriller e suspense utilizada no seriado “Flash-Gordon” dos anos 30/40. Os voos e fugas espetaculares, e a perseguição pelo espaço, são configurados na divisão da ação em dois tempos: o de Lewis se esforçando para pegá-lo, o de Watney lutando para ser salvo em pleno espaço. Com a agravante de que os equipamentos não funcionam e ela tem de improvisar cordas e peças, verdadeiras gambiaras. A sequência representa o esforço individual da heroína sobre o coletivo, um dos pilares da ideologia estadunidense. Na verdade, ela foi apenas uma das peças do resgate.

No entanto, Scott dá ao filme estrutura idêntica à de “Apolo 9 (Ron Howard, 1995), (Gravidade, Alfonso Cuarón, 2013), (Interestelar, Christopher Nolan, 2014”,), que transformam seus personagens em heróis. Em “Perdido em Marte”, apenas Watney, Lewis, Kapoor e Purnell são personagens reflexivos, capazes de elaborar saídas para as barreiras impostas pela missão à Marte. Os demais, inclusive Sanders, são reativos, se atritando uns com os outros, como policiais numa delegacia ficcional.

Restou a Scott tornar seu filme multiétnico, multirracial, dando a Lewis o comando da missão, ampliando o papel da mulher para a área espacial. E mostrando a capacidade do afro-estadunidense Rich Purnell (Donald Glover) de elaborar cálculos que reduzem o tempo de resgate de Watney. No entanto, isto não anula os clichês e estereótipos que banalizam o filme. Scott foi ótimo em “Alien, O Oitavo Passageiro (1979)” e “O Caçador de Androides (1982)”. Era real e criativo.


“Perdido em Marte”. (“Martian”). Thriller/Suspense. EUA. 141 minutos. 2015. Música: Harry Gregson-Williams. Fotografia: Dariusz Wolski. Roteiro: Drew Goddard. Direção: Ridley Scott. Elenco: Matt Damon, Chiwetel Ejiofor, Jessica Chastain, Jeff Daniels, Sean Bean.

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