Reflexões sobre perspectivas do capitalismo em crise (II)

Marx e o capital fictício

“Um otário vê exemplos isolados de aplicação de golpes virtuais…(…) Infelizmente, muitos de nós fomos otários – inclusive Arkeloff e eu”, R. Shiller, junto com Akerlof prêmio Nobel de economia [1]

A.Sérgio Barroso *

Por falar em otários, não foi por falta de aviso e alerta a ocorrência desse último crash das bolsas de valores de agosto último. Significando mais uma montanha de mentiras criadas pela propaganda americana sobre a “recuperação” de sua economia, o índice Down Jones desabou em queda de mais de 1000 pontos, o que não acontecera desde 2010! Enquanto isso, a República Popular da China acumulava em setembro US$ 3,557 trilhões em reservas internacionais – na moeda dos “otários” -, mesmo após ter sacado cerca de US$ 100 bilhões para deter o ataque especulativo em sua moeda, o renminbi (agosto-setembro).

Aliás, o mesmo Lawrence Summers (ex-secretário do Tesouro dos EUA), reintrodutor da expressão “estagnação secular” afirmou então sobre o recente crash bolsista que, “como em agosto 1997, 1998, 2007 e 2008, podemos estar nos primeiros estágios de uma situação muito difícil”. Ora, tal prenúncio sucede o longo processo em que o BC americano faz malabarismos inéditos e jogatinas para artificializar e forçar a alta das ações em geral, resultando em subir o mercado de ações puramente por interesses de financistas. Somadas as manobras a uma taxa de juros baixíssima, e o quantitave easing (expansão monetária através de compra de títulos), tanto quanto os grandes especuladores empresas como Amazon, Google ou Apple, especialmente, têm tomado empréstimos para comprar suas próprias ações e alavancá-las! [2]

Especulação e burla desenfreadas

Bem antes, bem que alertara o economista Ha-Joon Chang (sul-coreano, Cambridge), a propósito da fantasia da recuperação americana e europeia: “Isso não é uma recuperação, é uma bolha, e ela vai estourar”.  Quando bolhas de proporções históricas estão se desenvolvendo nos Estados Unidos e no Reino Unido, os dois mercados de ações mais importantes do mundo, anunciava então Chang no britânico The Guardian (24/02/2014).
Chang, na entrevista, ironicamente relembrou que Robert Lucas, o badalado economista do mercado liberalizado (prêmio Nobel de Economia,1995), orgulhosamente declarou em 2003: “o problema da prevenção da depressão foi resolvido”. Em 2004, Ben Bernanke (presidente do Fed, BC dos EUA) argumentara que, provavelmente, graças a uma melhor teoria da política monetária, o mundo entrara era da “grande moderação”, em que a volatilidade dos preços seria minimizada. Portanto, crises no horizonte estariam descartadas…

Dez anos depois do embuste de Bernanke, o economista e marxista francês Gérard Duménil (ex-diretor de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique, CNRS) foi levado a informar que a crise econômica mundial de 2008 poderá se estender por um período superior a dez anos. O longo período – maior do que ocorreu com outras crises no passado – dever-se-ia ao fato de não ser possível ainda ver uma saída para Europa e Estados Unidos e seus problemas com o significativo aumento da dívida pública. (Valor Econômico, 16/04/2014).

Em Junho último, o editor de economia do Financial Times Martin Wolf, frenético defensor dos “trapaceiros” (Shiller) ilustrava a pantomima: 1) os níveis de endividamento estão substancialmente maiores do que em 2007; 2) está limitada a capacidade dos governos responderem aumentando drasticamente seus déficits fiscais dado o crescimento do endividamento; 3) há uma “probabilidade razoável” das taxas de juros continuarem muito baixas: antes da crise, as taxas de juros dos bancos centrais centro capitalista eram de 5% ou 6% – se antes da próxima crise forem de 2%, 3% ou mesmo 4%, “não terão muito o que cortar”. Por todas essas razões, é perfeitamente possível imaginar “que a próxima crise será pior”, enfatizou Wolf (Valor Econômico,12/06/2015).

Isso se soma a um quadro do sistema internacional trocas no comércio que, de modo inconteste, vai desenhando um cenário real cada mais uma vez perigosamente turvo e representativo de um estado depressivo desigual (expressão nossa; voltaremos ao termo) na economia mundial. O marxista Michael Roberts, por exemplo, exibindo o gráfico abaixo, pergunta: “O comércio mundial está voltando para as profundezas da Grande Recessão?”

World trade is heading back to the depths of the Great Recession

(Ver aqui: https://thenextrecession.wordpress.com/2015/09/28/from-crawl-to-crash/)

De fato, de acordo com o diplomata brasileiro Roberto Azevêdo (diretor-geral da OMC), o comércio mundial (exportações e importações) deve cair pela quarta vez seguida, saindo de uma média histórica de crescimento anual com média de 5,1% para uma taxa menor que 2,5%. Azevêdo foi explícito: “Não consigo ver uma retomada do patamar de crescimento do pré-crise no futuro imediato”, prevendo crescimento do comércio muito modesto, muito moderado “onde houver”. Sim, palavrório diplomático!

Marx e a exacerbação fetichista do capital fictício

Ora, na origem das transformações que levaram o capitalismo a esta crise que se arrasta (e se, horizontes!) desde 2007-8 encontram-se as metamorfoses do capital, crédito e do sistema financeiro global que assinalamos en passant no artigo anterior.

Resumindo a descrição de R. Guttmann [3]:

1) a combinação de desregulamentação, globalização e informatização transformou um sistema financeiro estritamente controlado, organizado em âmbito nacional e centrado em bancos comerciais (que recebem depósitos e fazem empréstimos), em um sistema auto regulamentado (autônomo), de âmbito global e centrado em bancos de investimento (corretagem, negociações de lançamento de ações mediante subscrição pública onde a empresa e intermediário financeiro colocam-nas no mercado de valores mobiliários).

2) Alterações estruturais do sistema de crédito foram formatadas por inovações financeiras dotando o sistema de crédito geral de flexibilidade e capacidade de reação às necessidades de credores e devedores incentivando as bolhas de ativos, a subestimação de riscos e a alavancagem excessiva. Ou seja, a “financerização” prioriza o capital fictício fazendo com que derivativos (de crédito futuro) ou valores mobiliários (papéis, títulos) lastreados em ativos, distam infinitamente da atividade econômica real de criação de valor.

3) A desregulamentação permitiu que os bancos se expandissem a novas áreas geográficas ampliando as opções de serviços, combinam diversas funções financeiras (operações bancárias comerciais, operações bancárias de investimento, gestão de fundos, gestão de fortunas privadas e seguros; combinam diversas funções financeiras (operações bancárias comerciais, operações bancárias de investimento, gestão de fundos, gestão de fortunas privadas e seguros) num único comando.

Para Marx, no movimento do capital portador de juros (D-D’, dinheiro que gera dinheiro sem passar pela produção) – ou o capital financeiro em uma de suas variantes – a relação capital atinge sua forma mais alienada, a “mais reificada e mais fetichista, embora continue sendo um produto de uma relação social, não relação entre coisas; segundo Marx, o capital como “fetiche autômato perfeito”. [4]

Conforme ainda Marx, o capital fictício integra a dinâmica intrínseca do moderno sistema de crédito. O que permite uma acumulação de capital muito superior ao valor concreto do capital industrial empregado, ao tempo em que torna objetiva a ocorrência de crises de realização e de superprodução. Ou ainda, o capital a juros vem a ser é a sua forma mais geral porque corresponde à culminância do processo de construção teórica, que avança das formas mais abstratas (mercadoria e dinheiro) “para as formas mais concretas que correspondem à feição final assumida pelo regime do capital”. Sintetiza Belluzzo: o conceito e a prática do capital fictício “tem uma importância teórica maior do que os marxistas costumam lhe atribuir”; ele estabelece critérios de valorização do capital distintos do capital efetivo; critérios que “são necessariamente especulativos”, no sentido de que se apoia na avaliação do curso esperado do preço dos títulos, o rendimento que se espera descontado pela taxa de juros do mercado. [5]

Neoliberalismo e a invencionice dos “otários”

Assim, a partir dos anos 1980, três movimentos simultâneos e centrais passam a protagonizar novos e crescentes movimentos especulativos, catapultados pelas medidas de desregulamentação e liberalização das economias capitalistas centrais.

1) Os bancos comerciais, submetidos à regulação específica e ao aumento da concorrência, expandiram extraordinariamente o volume de crédito concedido; retirando parte dos ativos (e, portanto, dos riscos) de seus balanços, uma vez que seu capital próprio (reservas) era insuficiente para atender as exigências dos acordos internacionais supervisionados pelo BIS (Banco de Compensações Internacionais). 2) Os bancos passaram a administrar fundos de investimentos, oferecer serviços de gestão de ativos por meio de seus vários departamentos, fornecer seguros financeiros (hedge) como dealers (agentes negociadores) no mercado de derivativos e ofertar linhas de crédito nas emissões de commercial paper (papéis de curto prazo) e outros títulos de dívida no mercado de capitais. 3) instituições de vários tipos evoluíram a desempenhar um papel semelhante ao dos bancos comerciais, fora da estrutura regulatória existente e, assim, deliberadamente inaptos às reservas de capital obrigatórias. Isto é, bancos e verdadeiros supermercados financeiros deixaram de atuar como simples fornecedores de crédito e passaram a condição crescente de intermediadores de recursos em troca de comissões; romperam assim relações diretas antes existentes, com os tomadores de crédito que costumavam ser vigiados por um “indicador antecedente” de riscos de inadimplência. [6]

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Óbvio que a palavra “otários” – escolhida pelo medalhado economista americano Shiller – não passa de retórica ou dissimulação: ele é “otário”? O neoliberalismo e suas crises são a exacerbação especulativa das operações financeiras fictícias, no sentido desvelado por Marx. Hoje multiplicado pelo inusitado, trata-se de fabricação humana assentada nas possibilidades da valorização e da exploração do regime hodierno do capital. “Otários” são bilhões de seres humanos e trabalhadores esmagados pela alienação do fetiche do capital.

No próximo artigo examinaremos dimensões da crise e as indagações sobre as perspectivas.

NOTAS
[1] Em: “Fraudes, otário e mercados financeiros”, R. Shiller, Valor Econômico, 18/09/2015.
[2] Ver: “China nada tem a ver com isso! Nos EUA, são empresas recomprando as próprias ações”, entrevista de M. Hudson, redecastorphoto, 27/08/2015; ver aqui: http://www.marchaverde.com.br/2015/08/china-nada-tem-ver-com-isso-nos-eua-sao.html
[3] Ver: “Introdução ao capitalismo dirigido pelas fianças”, R. Guttmann, Novos estud. – CEBRAP nº. 82, São Paulo Nov. 2008
[4] Ver: O Capital, Livro 3, v. 5, p. 450-1, Civilização Brasileira, s/data.
[5] Ver: “Marx e Keynes e a finança capitalista”, L. Belluzzzo, em: “Os antecedentes da tormenta”, Unesp/FACAMP, 2009.
[6] Ver: “A crise financeira e o global shadow banking system”, Marcos M. Cintra e Maryse Farhi, em: “Novos estud. – CEBRAP  no.82, São Paulo Nov. 2008.

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