Memórias da saga comunista (parte 1)

Entre 2011 e 2012 produzi, para a Fundação Maurício Grabois, o livro “Vidas, veredas: paixão”, publicado pela editora Anita Garibaldi. Trata-se de uma coletânea de perfis de revolucionários então com mais de 30 anos de militância no PCdoB, incluindo histórias políticas e pessoais, algumas hilárias, pitorescas, outras dramática e até mesmo trágicas, todas elas compondo um rico mosaico de vivências e lutas e dos comunistas em favor do Brasil e do povo brasileiro.

Daqui em diante, quarta-feira sim, quarta não, a coluna que assino no Vermelho, desde que o portal foi criado, vai apresentar trechos significativos desses perfis, começando pela cômica – embora politicamente significativa – reunião de Aldo Arantes, recém-eleito presidente da UNE, com o então presidente Jânio Quadros, dias antes de sua renúncia.

O topete do presidente da UNE 

O rapaz empertigado que cruzou, guiado por vistoso topete à James Dean, as ante-salas da Presidência da República, vestia um terno emprestado, curto nos ombros e na altura. A jovem que o seguia saltitava de quando em quando para acompanhar as passadas largas e rápidas do moço que não se deteve nem mesmo ao distinguir a presença de três oficiais idosos – e, por suposto, graduados – à espera de audiência.

Estudante da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Aldo Silva Arantes contava apenas 22 anos de idade e estava no Palácio do Planalto, naquele aziago mês de agosto de 1961, para comunicar ao chefe da Nação sua posse, semanas antes, na Presidência da poderosa União Nacional dos Estudantes (UNE). Nada a estranhar. Numa época em que não havia centrais sindicais (o Comando Geral dos Trabalhadores só seria criado no ano seguinte, ainda assim não como central), a UNE liderava o movimento social brasileiro, sendo seu dirigente autoridade nacional com acesso irrestrito aos mais eminentes gabinetes do poder.

Não por menos Aldo Arantes obteve precedência na agenda presidencial. Em marcha ao gabinete, observou apenas de soslaio os militares que aguardavam sentados, nada menos que os ministros com os quais se defrontaria alguns dias depois, em defesa da legalidade: marechal Odylo Denis, da Guerra (como então se chamava o já extinto Ministério do Exército); brigadeiro Gabriel Grün Moss, da Aeronáutica, e o almirante Sylvio Heck, da Marinha.

Já no interior do gabinete, parado, em pé, mãos cruzadas na frente do corpo, aguardou que o presidente se desvencilhasse do enorme e barulhento aparelho de telex no fundo da sala, cujo teclado martelava ardorosamente.

Ao cabo de alguns minutos, Jânio Quadros voltou-se para o visitante, afastou a mecha de cabelo que pousava sobre os óculos de espesso aro preto e disse:
– Bom di-a, se-nhor pre-si-den-te!

Era assim que falava, escandindo as sílabas e acentuando as últimas, misturando caretas e gestos.
Aldo Arantes varreu o gabinete com o olhar, buscando aquele a quem Jânio saudara com desmedido entusiasmo. Não havia ninguém, o presidente era mesmo ele.

– Pre-si-den-te, quei-ra se as-sen-tar!

Aldo estava acompanhado por Liana Maria Aureliano, presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da Universidade do Brasil (atual Universidade Federal do Rio de Janeiro). Sentaram-se ambos à vetusta mesa, onde repousavam um busto de Abraham Lincoln e um porta-retrato do líder iugoslavo Josip Broz Tito.

Como de hábito no expediente interno do Planalto, Jânio vestia o tradicional safári caqui copiado dos ingleses colonizadores da Índia, que o povo logo apelidou de pijânio.

– Presidente, acabei de ser eleito para a Presidência da UNE e trouxe ao senhor a comunicação da posse da nova diretoria…

– Se-nhor pre-si-den-te – interrompeu Jânio, fixando o jovem com o olhar vesgo e penetrante – nos Estados Unidos, na França em todos os países do mundo trata-se o presidente da República por excelência!

Aldo assentiu e logo passou à sua excelência o ofício comunicando a posse da recém eleita diretoria da UNE. Era um papel mimeografado. Jânio não perdoou:

– Se-nhor pre-si-den-te, os senhores necessitam de um chefe de cerimonial. Imagine, mandam para o presidente da República um ofício mimeografado!

Aldo mais uma vez desculpou-se e a audiência propriamente dita começou, com menores teores de histrionismo e esquisitices. O jovem apresentou extensa pauta de reivindicações. Jânio, no ato, ligou ao ministro Brígido Tinoco, da Educação e Cultura, pedindo que recebesse o presidente da UNE e atendesse a todos os seus pleitos, incluindo uma sede em Brasília e recursos para o Centro Popular de Cultura (CPC), iniciativa que a entidade realizava em todo o país.

A audiência longa e proveitosa deixou Aldo satisfeito. Iniciava sua gestão com pé direito. Deixou o Planalto e seguiu para Goiânia, onde morava a família.

Na tarde morna de 25 de agosto de 1961, numa loja de confecções no centro de Goiânia, Aldo e o pai escolhiam um terno para substituir o que fora emprestado para a posse e a audiência, dois dias antes, com o presidente Jânio Quadros. Foi quando soube da renúncia, pela estridente edição extraordinária de uma rádio local. O homem que desprezara os partidos e o jogo político-parlamentar e se afastara da ortodoxia conservadora que pavimentou seu caminho rumo à Presidência, deixara o cargo sob a alegação de que “forças terríveis” levantavam-se contra ele e o impediam de governar.

A bordo do terno novo, que lhe cabia melhor, Aldo voltou no mesmo dia ao Rio, onde confirmou suas suspeitas: os ministros militares, aqueles aos quais precedera dias antes, na audiência com Jânio Quadros, armavam o impedimento da posse do vice-presidente João Goulart, em viagem à China, sob a alegação de que estava ligado aos comunistas.

Entidade então com maior capacidade de mobilização no País, a UNE reagiu. Após decretar greve geral universitária, a diretoria espalhou-se pelas principais capitais do Brasil. Aldo, seguido por seu assessor Herbert José de Souza, o Betinho, viajou para Porto Alegre, onde o governador Leonel Brizola erguera resistência armada ao golpe.

A capital gaúcha era uma praça de guerra. O Palácio Piratini estava cercado por sacos de areia, automóveis, jipes, bancos da Praça da Matriz, trincheira defendida por civis armados e milicianos da Brigada Militar. No topo, ninhos de metralhadoras. Para além das barricadas, o povo. Milhares de estudantes e trabalhadores aglomeravam-se em torno do palácio. A atmosfera, em todo o Rio Grande do Sul, era mesmo de luta. No interior, os centros de tradições gaúchas arregimentavam o povo e o armavam com revólveres, espingardas e mesmo lanças e facões. Muitos desses gaúchos, com suas botas, bombachas e lenços no pescoço afluíam para Porto Alegre, preparados para a luta. Comitês de mobilização formaram-se entre estudantes e trabalhadores, intelectuais e artistas. Irreconciliáveis nos campos de futebol, Grêmio e Internacional se uniram em favor da luta.

Um posto de recrutamento de populares para a resistência foi instalado na Avenida Borges de Medeiros, num prédio em formato de mata-borrão, por isso assim apelidado. Em apenas cinco dias, 45 mil pessoas se inscreveram no Mata-borrão e entraram em filas para receber armas e treinamento. Um dos líderes dessa mobilização popular era João Amazonas, então dirigente principal do Partido Comunista do Brasil (na época ainda sob a sigla PCB) no Estado. A resistência gaúcha sensibilizou as ruas do Brasil e, ao cabo, encurralou os militares golpistas.

O comandante do III Exército, General José Machado Lopes, aderiu ao movimento legalista.

Aldo Arantes passava os dias no Piratini, articulado com o comando legalista. Dividia-se entre ajudar na mobilização dos estudantes gaúchos, dirigidos pela Federação dos Estudantes Universitários do Rio Grande do Sul (FEURGS), e falar na Cadeia da Legalidade que transmitia dos porões do Palácio Piratini para o Brasil. Uma rede de 14 emissoras de rádio que espalhou a resistência a todas as ruas do País. Brizola e Aldo Arantes eram a atração principal. Em nome da UNE, Aldo relatava aos estudantes brasileiros a evolução dos acontecimentos, apresentava diretivas de ação, conclamando à mobilização. Em várias capitais os estudantes eram convocados para ouvir, nas praças públicas, a palavra do presidente da UNE.

Aldo estava no Piratini quando Jango chegou, em 1o de setembro à noite, após um retorno intencionalmente demorado ao Brasil. Ele já havia aceitado, contra a opinião de Brizola, o acordo parlamentarista que transferia para o Congresso e o chefe do Conselho de Ministros boa parte das prerrogativas presidenciais. No dia cinco, um Viscount e um Curtis Commander da Varig decolaram de Porto Alegre. No primeiro, Jango e parte de sua comitiva; no outro, o restante da comitiva oficial e Aldo e Betinho, que ficaram em Campinas.

João Goulart foi empossado presidente da República no dia sete.

Aldo Arantes e Leonel Brizola desenvolveram, na breve, porém intensa luta democrática de agosto de 1961, profundos laços de afeto. Findo o movimento e ao se despedir do governador gaúcho, dele recebeu um revólver Rossi 38 “como símbolo da resistência”. Do presente, ficou apenas a lembrança. A asrma, durante a ditadura militar, foi doada a um militante da luta armada”.

Dias depois da posse, Aldo Arantes receberia, na sede da UNE, no Rio de Janeiro, uma visita inusitada: o presidente João Goulart, acompanhado por todo seu ministério, lá esteve para agradecer a participação dos estudantes na luta por sua posse. Somente 40 anos depois outro presidente estaria por lá: Luiz Inácio Lula da Silva, eleito em 2002.

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