“Que Horas Ela Volta”, passo à frente

Filme da cineasta paulista Anna Muylaert traz o olhar feminino para o conflito entre o arcaico e as mutações ditadas pelos emergentes no Brasil.

O que importa neste “Que Horas Ela Volta” é a maneira como o olhar da diretora/roteirista Anna Muylaert contribui para a compreensão da realidade brasileira, eivada de contradições. De ameaças de retrocesso à permanência do arcaico, de exploração à concentração de renda. Daí a importância que a doméstica pernambucana Val (Regina Casé) dá aos detalhes, sobretudo à hierarquia, à subalternidade, à preocupação em atenuar os conflitos com a patroa-burguesa Bárbara (Karine Teles).

O círculo feminino se amplia com a chegada da filha de Val, Jéssica (Camila Márdila), cujo comportamento reflete o da mulher nordestina liberada, decidida, disposta a ascender socialmente. Quer ser arquiteta e veio à São Paulo para isso. Ela é metáfora dos 46 milhões de emergentes que assustam a classe média tradicional e a burguesia brasileira. Não só pela urgência de ascensão social, como para fugir às seduções do consumismo e à cooptação da classe dominante.

Isto se dá quando Jéssica se insurge contra a mãe, ao vê-la submetida a tripla jornada de trabalho, morando num quartinho, cuidando de Fabinho (Michel Joelsas), filho adolescente dos patrões, em época pré-Lei das Domésticas. Ainda mais com a falsa ideia de integrar a família burguesa, persistente armadilha da burguesia para iludir trabalhadoras/res domésticas/cos (e não só eles) desde os tempos da casa-grande e da senzala (e continua).

Jéssica é agente desmistificadora

Jéssica é instigadora, como o agente sindical-comunista (Marcelo Mastroianni), que organiza os operários durante a greve numa fábrica italiana em “Os Companheiros” (1963), de Mário Monicelli (1915/2010), e de catalisadora, igual ao anjo (Terence Stamp) em “Teorema” (1968), de Pier Paolo Pasolini (1922/1975), que desconstrói as fantasias de família burguesa. Enquanto o burguês Carlos (Lourenço Mutarelli), patrão de Val, tenta seduzi-la, ela descortina as frustrações dele como artista plástico, o afastamento de Bárbara e a perda de controle da família.

Jéssica é assim desmistificadora das decadentes estruturas burguesas e agente da mutação radical da sociedade. Duas sequências o sintetizam: I – Quando aceita dormir no quarto de hóspede ao invés de no piso no quartinho da mãe, II – Ao visitar as criações dos arquitetos comunistas Villanova Artigas (1915/1985) e Carlos Niemeyer (1907/2012) tece comentários sobre a necessidade de a arquitetura harmonizar grandes espaços com a natureza nas megalópoles, evitando a asfixia urbana.

Seu contraponto, em termos de classe, é Val, a nordestina “ciente de seu lugar”, pilar da mão-de-obra barata, que faz tudo para manter a vaga. A filha, embora a envaideça, é “ameaça à sua estabilidade”. Ela, Val, representa o passado, a empregada que se tornará trabalhadora doméstica, com direitos trabalhistas assegurados pelo Lei Complementar n° 150, de 01/06/2015, não pela “bondade da patroa”. Jéssica terminará sendo, para ela, a agente libertadora ao lhe tirar as argolas, incutindo-lhe consciência de classe.

Val é a escrava pré-libertação

É também por meio dela que Muylaert transforma os objetos de cena em agentes da ação, do humor, da crítica à etiqueta e rituais burgueses. Eles perdem a função decorativa, permitindo ao espectador situar classe, posses, exteriorização de riqueza (série Downton Abbey. 2014). Como nas sequências da bandeja de prata e do pote de sorvete. Mas sobretudo na chapliniana mudança de xícaras na bandeja para encontrar lugar para a cafeteira.

Mas filmes são um todo, cada recurso narrativo tende a reforçar o tema central. Neste “Que Horas Ela Volta” apenas a “subtrama” da relação Carlos/Jéssica destoa, pois não se sabe porque a sedução dela frustrou. Restam inferências, como o desinteresse dela, ou o ciúme de Bárbara. Muylaert tenta elucidá-la na cena de Bárbara deitada sozinha no sofá da sala enquanto Carlos está em seu escritório. Na verdade, ele se sente traído, ao desabafar: “Todos aqui vivem às custas de meu dinheiro”.

Enfim, o interesse do filme está em seu encadear e nas situações que refletem a posição da mulher na sociedade brasileira atual. Tem andamento de comédia-dramática fazendo Regina Casé lembrar seus tempos de trupe teatral no Asdrubal Trouxe o Trombone (Trate-me Leão, 1977), ou da tragédia classe-média “Sete Gatinhos” (1980), de Neville de Almeida, baseada em Nelson Rodrigues. Porém a cena é dominada por Jéssica nas duas últimas partes, dada à forte presença da jovem atriz Camila Márdila.

No entanto, este é também um filme de belos solos. O de Regina Casé na piscina é pura catarse. Traduz seu desafio à patroa ao ocupar o espaço sagrado da mansão, símbolo de classe e riqueza. Se antes, os bons papéis femininos refletiam tragédias, deixando o triunfo aos homens, Muylaert se interessa por algo mais amplo: a liberação feminina.


“Que Horas Ela Volta”
. Drama. Brasil. 2015. 111 minutos. Música: Fábio Trumoler. Montagem: Karen Harley. Fotografia: Bárbara Alvarez. Roteiro/direção: Anna Muylaert. Elenco: Regina Casé, Camila Márdila, Karine Teles, Lourenço Mutarelli, Michel Joelsas.

– Festival Sundance 2015: Melhor Atriz: Regina Casé.

– Indicado pelo Brasil candidato à seleção para o Oscar 2016.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor