“Síndrome Astênica” (Parte 2)

Filme da cineasta russa Kira Muratova, cuja obra descortina seu país, discute a crise sócio-político-econômica no ocaso da União Soviética.

A própria incapacidade de Nikolai encontrar um tema para desenvolver em sua escrita reforça a ideia de decadência, o sono profundo em que ela, a intelectualidade, entrou. O desfecho é um bom indicador disso, ele não tem condições de se aprumar ou reagir aos chamados da namorada. Ninguém o reanima ou mesmo consegue arrastá-lo, ele continua a dormir, numa astenia, fraqueza, incapacidade de uma sociedade de se reinventar.

Pode parecer pessimista, criticismo burguês, por Muratova não apontar saídas por meio de personagens que representem contraponto. Mas pelo menos não fugiu à discussão, tendo sofrido censura por isso. Os personagens de Síndrome Astênica, ao contrário de seus demais filmes, não reagem um ao outro com atitudes burlescas, como se em constante zombaria. Pelo contrário, ela os põe em situações nas quais se comportam como seres normais, daí suas fragilidades.

Assim, ele completa Conhecendo o Grande e Vasto Mundo (1978), também exibido no 15º Indie BH, realizado de 03 a 09/09/2015, outro de seus filmes a mergulhar no cotidiano dos trabalhadores soviéticos num recanto do interior da Rússia. Por meio de um triângulo amoroso, ela trabalha as relações da famosa atriz Lyuba (Nina Ruslanova) com o diretor de teatro Kolya (Alexei Zharkov) e o motorista de caminhão pesado Misha (Sergei Popov), durante uma festa de casamento e a inauguração de uma fábrica de tratores.

Convidados se unem a jovens e operários

A festa termina se transformando numa confraternização deles com estudantes voluntárias na pintura da fábrica, diretores do sindicato dos operários, dirigentes e juventude comunistas locais. Todos empenhados em erguer o que trará desenvolvimento para o lugarejo. Há uma energia, uma alegria, uma confiança no futuro que contrasta com o caos de Síndrome Astênica. Ali tudo funciona, inclusive evita rusgas entre os dois apaixonados por Lyuba.

A câmera de Muratova os filma em sequências de conjunto, sem isolá-los para destacar a ação. Quando muito em breves cenas na boleia do caminhão pesado. Isso reforça a interação entre eles, demonstrando possibilidades onze anos antes da derrocada. Mesma força, encantamento, o espectador encontra em Breves Encontros (1967), cujo frescor emana da história a entrelaçar a paixão platônica da jovem camponesa Nadya (Nina Ruslanova) pelo geólogo Maxim (Vladmir Vysotskiy) e a relação conflituosa deste com sua companheira Valentina (a própria Muratova).

O cenário é uma cidade do interior, onde esta última é chefe da fiscalização das construções da cidade, inclusive apartamentos para as camadas populares. A exemplo de Conhecendo o Grande e Vasto Mundo o clima é de otimismo nesta obra que se encaixa no ciclo de influências da Nouvelle Vague, através de câmara ágil, personagens em constante movimento, cenários despojados, ambientes abertos. E Muratova jovem, se dividindo entre a direção, o roteiro e a interpretação com inventividade.

Filmes mostram duas URSS

Percebe-se, por meio destes dois filmes, duas URSS diferentes: a da Perestroika/Glasnost (transparência), e a dos anos em que o país, ainda formado por várias repúblicas, vivia em ebulição, em meio ao crescimento, obras, pesquisas de campo, caso de geólogo Maxim buscando metais preciosos, e nutria esperança igual à jovem Nadya. Os filmes de Muratova servem então como registro desta transição, com seus grandes planos, fixos, delongados, influência do húngaro Bela Tarr (Satantango, 1994), e estética original.

Não é diferente em seus filmes atuais, em que passeia por diversos gêneros mantendo seu apurado domínio da técnica cinematográfica. Em Três Histórias (1997) se exercita no suspense, no horror, em urdidos assassinatos, pontificados por seu mordaz humor. Neste ela constrói narrativas mostrando ser ainda possível variar, sem cair no clichê. Caso do homem que mata o patrão e tenta convencer o amigo a queimá-lo no forno. Ou da atendente de hospital que assassina mulheres com requintes de crueldade.

Humor se impõe

Mas é na última história que ela esbanja criatividade ao opor uma criança de quatro anos ao avô. O desfecho, além do humor ácido, faria inveja ao próprio Hitchcock (1899/1980). O mesmo se dá em Mudança de Destino (1987), baseado no conto “A Carta” de W. Somerset Maugham (1874/1965), já adaptado para o cinema por William Wyler, em 1940. Ela estrutura-o como um acidente, que se desdobra numa análise da Justiça da URSS, com advogados engenhosos, diretor de presídio racista, marido mais interessado em cuidar de sua mina.

O mais importante em si não é a história, mas como ela a desdobra, sobrepondo sons, cenas, situações, humor, com o cenário se tornando opressivo, até o desfecho cheio de inventividade e de símbolos, como o do cavalo perdido até descobrir que podia usufruir a liberdade conquistada. Muratova, nascida na Moldávia, em 1934, hoje morando na Ucrânia, ao invés de se fechar ampliou seu estilo, sem perder a capacidade de se reinventar.

Síndrome Astênica. Drama. URSS. 1989. 153 minutos. Montagem: Valentina Oleynik. Fotografia: Viktor Kabachanko/Vladmir Pankov. Roteiro: Kira Muratova/Alexander Chernykh, Sergei Popov. Direção: Kira Muratova.

(*) Veja os filmes citados no Indie-SP, de 16 a 28/09/2015, Cinema I.

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