"Síndrome Astênica”, fraturas revisionistas (parte 1)

Filme da cineasta russa Kira Muratova, cuja obra descortina seu país, discute a crise sócio-político-econômica no ocaso da União Soviética

 Não se pode esquecer das cortinas e das bandeiras. Umas para abrir quando se quer entender os fatos históricos, outra para agitar no momento em que deles se participa. A mostra de nove longas-metragens e dois curtas, de uma obra de cerca vinte de filmes da cineasta russa Kira Muratova (1934) se presta a ambas ao descortinar o cotidiano de seu povo em três períodos da história da União Soviética (1917/1991). Dentre eles, o multifacetado “Síndrome Astênica”(1989), tido como sua melhor criação.

Seu universo assemelha-se ao de seu compatriota Dziga Vertov (1896/1954), principalmente o de “O Homem Com a Câmera” (1929), pela precisão com que se detém em um e outro detalhe da narrativa. Ambos transitam pelas ruas de Moscou para desvendar o cotidiano de seu povo. No seu caso, o que emerge é de uma crueza e realismo impressionante. Chocante até. Abordagem rara, pois foge ao idílico, o exultante, o virtuoso.

No filme em questão, tudo se passa às vésperas da desmontagem das estruturas do revisionismo (1956/1985), herdadas de Nikita Kruschev (1894/1971), ocorrida durante a Perestroika (reestruturação), arquitetada por Nikolai Gorbachev (1931). Muratova não traça uma linha para o espectador entender o que mostra, apenas muda cenários para pegar as consequências das mudanças da edificação da URSS de Lenin (1870/1924) a Stalin (1878/1953). E parece assim antecipar o que viria dali a dois anos.

Stalin tratava dos trabalhadores

O filme se divide em duas partes, bem demarcadas. A primeira, quase um curta-metragem em preto e branco, de cerca de 30 minutos, espécie de preâmbulo para o que vem a seguir. Mostra a médica Natasha (Olga Antonova) cinquentona em transe após o enterro do companheiro. É a um só tempo a loucura pela perda, a solidão e o desinteresse pelo trabalho. Ela sai pela rua agredindo as pessoas, se oferecendo a homens e imprecando contra os passageiros do lotado metrô.

São sequências em que o ser humano atesta sua capacidade de deixar a dor nele se entranhar e de fazer o outro reagir com brutalidade. Ela está perdida, sem ter em quem se apoiar. Este preâmbulo abre espaço para, na segunda parte, a câmera de Muratova se deter em velhos prédios de concreto envelhecidos, habitados por idosos, entregues a seus impasses, enquanto se refugiam nos corredores ou passeiam pelas calçadas.

Num dos planos-sequências, ela se detém na idosa maquiada, vestida com dignidade, que, como se entrevistada sobre o que permitiu aquele estado de coisas, responde: “No tempo de Stalin, ele cuidava dos trabalhadores”. Sua frase ajuda a entender o antes e o depois, a diferença entre a edificação e consolidação (1917/1954) e o revisionismo. Seus esteios, incluindo a propriedade coletiva, as cooperativas agrícolas, o Estado sem classes, foram desmontados no Revisionismo e concluído com a Perestroika, em 1985.

Solução para Muratova é salvar a juventude

A emblemática frase da idosa é o bastante para o espectador entender a extensa fila de russos para se abastecer de peixe. Idosos, jovens, crianças, estão ansiosos por serem atendidos. Segundo os economistas Michael Burawoy e Pavel Krotov, no artigo As Bases Econômicas da Crise Política Russa (1), “(…) a economia soviética era de escassez. A propriedade central dos meios de produção e a direção centralizada da economia fomentaram a permuta, em que o poder político tinha mais valor do que a eficácia econômica, e as limitações orçamentárias não eram rígidas.

As empresas procuravam aumentar o seu poder, muitas vezes ampliando-se ou mediante o monopólio da produção de bens e serviços (…). A escassez levou à acumulação, que por sua vez gerou mais escassez (1). Assim, a sequência de cinema-verdade se presta a fechar o círculo para Muratova espreitar a sala de aula, onde Nikolai (Segei Popov) leciona inglês, e abrir o leque sobre a realidade social soviética naquele período. Há caos na sala de aula, ele não consegue controlar os alunos e acaba trocando tapas com um deles.

Desta forma, Muratova fecha o círculo sobre o que lhe interessa nesta abordagem sobre os descaminhos da URSS de então. Identificar os problemas e centrar a narrativa na possível solução, ou seja, no engajamento da juventude. A longa sequência da reunião em que os professores discutem a crise na sala de aula, a urgência de uma mudança didática e a recuperação dos alunos sintetiza suas preocupações. No entanto, o corpo docente não se entende, cada um aponta uma solução.

Ela equilibra suas críticas mostrando o quanto a juventude é recuperável. O aluno que brigou com Nikolai é seu exemplo. Ele ao ver duas moças aplicando bullying num jovem deficiente se apressa em afugentá-las, ajudando-o a se recompor, diante de seu professor. Resta então a intelectualidade, configurada em Nikolai, aspirante a escritor, apreciador de caviar e tendente à publicidade. Sua narcoléptica, doença do sono, é a metáfora usada por Muratova para atestar o quanto a intelectualidade fugia à realidade imperante da URSS daquela época.

(1) Burawoy, Michael; Krotov, Pavel, As Bases Econômicas da Crise Política Russa, Paz e Terra.1995, Pág.315.

Na próxima semana, Síndrome Astênica – Parte II (Final).

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