“Obra”, urnas e esqueletos

Filme do cineasta paulista Gregório Graziosi desconstrói São Paulo através de arquiteto dividido entre seus dilemas e passado nebuloso da megalópole.

Numa São Paulo demarcada pelas cordilheiras de edifícios a impedir o descortinar do horizonte e seus limites, o cineasta Gregório Graziosi a descontrói mostrando-a cheia de fraturas e manchas nebulosas à espera de seu desvendar. Nesta sua “Obra” de estreia em longa-metragem, ele trata dos pontos obscuros que remetem ao passado da megalópole, oculto em urnas funerárias indígenas e esqueletos humanos soterrados sob estruturas de concreto armado de prédio em construção.

Através deles monta um quebra-cabeça borgesniano que oscila entre o realismo fantástico e o expressionismo, para cuidar de distintas fases de sua história. Usa para isto apurada estética em preto e branco, eficientes movimentos de câmera e enquadramentos de cena, jogo de luz e sombras em fechados ambientes, curvas e corredores, percorridos constantemente pelo atordoado arquiteto João Carlos (Irandhyr Santos).

Não se vê a cidade propriamente, apenas nesgas a aprisionar seu passado e impedir o desvendar de seu presente. João Carlos é o burguês, herdeiro de família do ramo da construção civil, que se depara com fatos aparentemente inusitados: urnas de cadáveres indígenas num sítio arqueológico, pesquisado por sua companheira (Lola Peploe), e a chocante descoberta de esqueletos humanos nas fundações de prédio em construção. São duas vertentes da história da cidade se encontrando.

Cidade ignorou rituais indígenas

As urnas atestam a maneira de os indígenas enterrarem seus entes queridos para a posteridade, num espaço sagrado. Negligenciado pela megalópole ao crescer desordenadamente, desrespeitando rituais e culturas ancestrais, sobre os quais se ergueu. Mantendo-se distante de sua própria história, para atender às imposições do mercado imobiliário durante o bloom urbano das décadas de 60 e 70, quando se fixou como centro do capitalismo brasileiro e latino-americano.

Se a maneira de tratar o ritual indígena é indicativo de descaso, pior quando a câmera de Graziosi flagra esqueletos entre a massa de concreto no edifício em construção. Ela não passeia pelos corpos, mostra-os à distância, em rápidos takes. Tempo suficiente para a história recente do país provocar uma sucessão de imagens de corpos soterrados nos porões de prédios antigos, após torturados e executados por seus algozes das forças armadas, durante a ditadura civil-militar (1964/1985).

Trata-se por outro lado de inferências estimuladas por Graziosi e seu parceiro de roteiro Paolo Gregori. Cena alguma, retratos na parede ou diálogo fazem referências as buscas dos desaparecidos. O espectador terá de enovelar suas próprias referencias, para desconfiar do que escondem os alicerces de velhos prédios da megalópole. Este tipo de construção de entrechos sustentados por insinuações, não pela investigação de João Carlos, ao invés de desmentir as suspeitas, só as reforçam.

Conflito indica luta de classe

Graziosi as tornam ainda mais instigantes ao construir fortes contrastes entre o burguês, João Carlos, patrão e autor do projeto do prédio, e o mestre de obras (Júlio Andrade), seu empregado e supervisor da obra. Este reclama de que tudo recai sobre ele, embora seja o nome do chefe que está na placa como responsável pela construção. Emerge daí franca luta de classe, motivada pelos duplos interesses de João Carlos, que o impedem de investigar o denunciado pelo subalterno.

Ele é hesitante, atordoado com os cadáveres, incapaz de pressionar o pai (Markus Ribas/1947/2013) para desvendar a origem deles e afastar as desconfianças do mestre de obras. Na sequência de ambos no Edifício Copan, Graziosi põe a câmera no reduzido espaço entre eles, dotando-a de tensão e violência. João Carlos se vê acuado, sem saída. Sua única reação é lançar a culpa em seu ancestral paterno. “Ó, meu avô, que herança foi esta que você me deixou!”. Entre eles, a partir daí tudo é possível.

Filme remete ao hoje vivido

Mesmo Graziosi intercalando sequências intimistas, os exercícios de João Carlos para a coluna, seu encontro com a companheira, sua preocupação com o filho a nascer, é o confronto com o mestre de obras que dita os entrechos e dá sentido ao filme. O traz para o momento histórico vivido pelo país. Faz o espectador deparar-se com torturados e familiares dos desaparecidos. Têm os fatos, as provas, porém os guardiões dos segredos e arquivos se negam a revelá-los, protegendo os executores.

Assim, “Obra” mergulha no universo submerso de São Paulo, para desvendar outra de suas facetas. Ela surge grandiosa, nem por isto menos enigmática e cheia de armadilhas. Mantém as ambiguidades e a alienação tratados por Luiz Sérgio Person (1936/1976) em “São Paulo S/A” (1965), no início da ditadura civil-militar, época da adesão ao capitalismo selvagem, sonho de burgueses e classe média reincidentes de hoje contra as camadas populares, as políticas sociais e a democracia. O ovo da serpente quebrou.

“Obra”. Drama. P&B. Brasil. 2014. 80 minutos. Montagem: Gabriel Vieira de Mello. Fotografia: André S. Brandão. Roteiro: Gregório Graziosi/Paolo Gregório. Direção: Gregório Graziosi.

Prêmios: Festival do RJ 2014 – Melhor Filme Latino-americano pela Federação Internacional de Críticos de Cinema (Fipresci) e Melhor Fotografia pelo júri do festival.

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