Haddad lembra Lerner

Em mobilidade urbana, não cabe partidarismo, apenas pulso firme em favor de cidades mais humanas. O prefeito de São Paulo, Fernando Haddad está conseguindo dar um jeito na muvuca, na função de gestor, enfrentando interesses de alguns que querem a prevalência do privado sobre o público. Me fez lembrar de Jayme Lerner, nomeado em 1971 prefeito de Curitiba, pela Arena, o partido oficial da ditadura.

Como uma de suas primeiras medidas, Lerner disse que iria fechar a Av. Luiz Xavier, a “Boca Maldita”, pra fazer um calçadão. Era uma quinta-feira e na sexta seria feriado. Muitos coxinhas, com seus carrões e motos potentes, anunciaram uma manifestação no local no domingo seguinte, em protesto contra a decisão.

Na moita, Lerner arregimentou sua equipe e mãos à obra, dia e noite. Quando os coxinhas chegaram, no domingo, o calçadão estava pronto. E está lá até hoje, com o nome de Rua das Flores. Com ironia, ele dizia que “o carro particular é como a nossa sogra: ela precisa ter seu lugar, mas desde que não queira mandar na vida da gente”.

Ali, era só o começo de mudanças. Em 1974, foram inauguradas em Curitiba as primeiras linhas exclusivas de ônibus, chamadas de BRT (em inglês, “Bus Rapid Transit”), à época uma iniciativa pioneira no mundo inteiro. Com essas, vieram os “túneis de acrílico”, que eram as paradas de integração, onde o passageiro usa o mesmo bilhete em outros percursos. Práticos e bonitos.

A tese de Lerner é de que os prolongados planejamentos são inimigos das intervenções nas cidades e de que a criatividade começa por cortar um zero no orçamento. Ou seja, tudo deve ser rápido e barato.

De modo pontual, Haddad tem agido dessa forma. Ciclovias, calçadas, travessia de pedestres, velocidade dos carros e outras ações vêm ganhando corpo de modo sensível. E geram resistências das mais diversas, com a participação de agentes do judiciário, que a toda hora questionam e até paralisam obras, em defesa de coxinhas paulistanos.

É fato que a vida nas cidades brasileiras é hoje tema de grande preocupação de toda a sociedade. Especial destaque é dado à questão da mobilidade urbana, setor que passa por uma crise sem precedentes na história do Brasil, frutos do próprio crescimento. Assim, vem ao centro das atenções o problema do transporte, que clama por ações dos gestores públicos.

É inegável que esse enfoque tem razão de ser, mas, é de igual modo inquestionável que aquilo que muitas vezes apontamos como “problema do transporte” não é um problema somente do transporte. É de cidades inteiras e regiões metropolitanas. E só será resolvido se olharmos em primeiro lugar ao ser humano que nelas vive.

Em verdade, porém, o Brasil já tem leis gerais a respeito da ocupação das cidades, que estão entre as melhores do mundo e dão respaldo a qualquer processo de mudanças neste campo. Em 2012, foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pela presidente Dilma Rousseff a Lei da Mobilidade Urbana.

Esse instrumento é fruto de décadas de debates e de estudos técnicos de excelente qualidade. Sua mais forte determinação é de que o transporte público coletivo deve ter prioridade sobre o automóvel particular nas políticas governamentais que tratam da mobilidade urbana.
A Constituição Federal de 1988, em vigor, já definia com clareza o papel de cada ente da Federação. Ao governo federal caberia a tarefa de formular políticas, induzir sua execução e capacitar pessoal pra isso.

No entanto, com a política de redução do tamanho do estado, na década de 1990, foram extintos os órgãos federais encarregados do planejamento e financiamento dos transportes públicos. Assim, foram dissolvidos, por exemplo, o Grupo de Estudos para Integração da Política de Transportes (Geipot) e a Empresa Brasileira de Transporte Urbano (EBTU).

Deste modo, as ações governamentais relativas à mobilidade urbana passaram aos estados e municípios. As prefeituras, que estão mais próximas do dia a dia do sistema de transporte público, ficaram com a responsabilidade de colocar em prática essas políticas.

A Lei da 2012 estabelece que as cidades com mais de 20 mil habitantes terão que fazer seus planos de mobilidade. No entanto, sua implantação tropeça nos mesmos empecilhos enfrentados pela matriz dela, que é o Estatuto das Cidades, em vigor há 14 anos, mas ainda sem os resultados que se esperava.

Para todos os efeitos, os municípios até fazem seus planos diretores, como essa norma determina, mas daí a implantá-los é outra história. Há interesses poderosos em jogo, que só serão vencidos por meio de processos democráticos, transparentes, de debate com toda a sociedade.

Especialmente nas cidades de menor porte, os governos locais se deparam com uma série de dificuldades, a começar pela falta de pessoal capacitado na gestão deste setor. Assim, como relatam muitos prefeitos, a autoridade pública municipal recorre às empresas privadas quando pretende fazer alterações na área de transportes, inclusive nos reajustes de tarifas.

E aí entra outro aspecto que desperta preocupação, que é o da natureza deste serviço público. Afinal, no posto de saúde ou hospital do Sistema Único de Saúde (SUS) ninguém paga nada. A escola pública de nossos filhos é de graça. Mas, pra andar de ônibus a gente paga. Por quê?

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