“Real Beleza”, retratos reais

Filme do cineasta gaúcho Jorge Furtado transita pela solidão, carências e conflitos submersos e mostra a persistência do patriarcado no sul do país

O cinema muitas vezes transita por vários gêneros que fazem aflorar no espectador sensações do já visto, mas se a narrativa for encadeada de forma envolvente, ele pode vê-lo como algo novo. Às vezes, neste “Real Beleza, ele tem a impressão de assistir à variação do melodrama, com andamento ditado pela trilha musical do compositor Leo Henkin. O cineasta gaúcho Jorge Furtado, no entanto, a desfaz ao lhe dar estruturação moderna, pondo o personagem central a desmontar as sutis aparências.

Neste caso específico, é o fotógrafo de moda João (Vladimir Brichta) o responsável por desencadear uma série de emoções e desejos submersos, ao desembarcar numa cidadezinha do interior do Rio Grande do Sul. E então a narrativa sobre a segunda chance em sua carreira se torna também um drama sobre uma família gaúcha, cujo destoar é matizado por duas mulheres. E daí ganha contornos inesperados. São duas gerações, a da quarentona Anita (Adriana Esteves) e da filha adolescente Maria (Vitória Strada), às voltas com persistentes imposições patriarcais.

A maneira como Furtado introduz os conflitos de ambas exige do espectador atenção, pois, aparentemente, quem dita os entrechos é João, mas, devagar, ele acaba conduzido. São elas que expõem o que há de retrógado no octogenário Pedro (Francisco Cuco), erudito, dono de vasta biblioteca, mas irascível e controlador. Sua cultura excessivamente livresca, no entanto, não o move para a mutação, o diálogo com as duas mulheres, de forma a libertá-las do patriarcado e adquirir vida própria.

Mãe e filha usam João para se insurgir

Nada disso é construído em confrontos diretos entre eles, nenhuma delas afronta-o. Vivem em função dele. Furtado constrói as sequências que atestam a aflitiva situação delas através das informações passadas por elas a João. É como se fossem personagens de melodrama dos anos 50, reprimidas e submissas, sem atentar para a liberação feminina em gestação. Anita, mais que a filha, demonstra o quanto reprime seu desejo na ótima sequência à beira do lago. Inesperadamente, sem culpa alguma, ela o libera, como se a muito esperasse por esta chance, e renasce. E a filha, enfim, vê como libertar-se do pai e construir seu próprio espaço.

As reações de ambas são mantidas por Furtado sob controle, para o comportamento delas não escapar à construção narrativa. Ou seja, de repente explodir em ira e ressentimento. Assim, o de Anita é sempre interiorizado, de olhares e comedidos gestos. E as de Maria apenas se insinuam, moldando-se à influência de João. E desta maneira o espectador sente a forte e impositiva presença de Pedro, embora ela nunca seja ostensiva. Surge daí a persistência do patriarcado, cuja configuração é a mulher cuidar do marido e da filha não ter laivos de independência alguma.

Elas, desta forma, transitam por estreitos espaços, mesmo usando João para atingir seus objetivos. O que o torna cumplice delas, espécie de agente catalisador de suas insatisfações. Como se depreende, Furtado inverte a narrativa dos choques de gerações e da insurgência da mulher. Elas acabam perdendo a iniciativa, pois esperam que João e o pai rompam o impasse ao invés de elas mesmas o fazerem. Trata-se, deste modo, do condicionamento provocado pelo persistente patriarcado, ainda incrustrado nas relações homem/mulher nos rincões Brasil afora (e não só).

Furtado foge ao glamour da moda

Estas questões, entretanto, não afloram de forma clara, o espectador tem de ligar os fios, as vertentes, para apreender nas entrelinhas as intenções de Furtado. Isto porque, em princípio, o filme é sobre a tentativa de João revigorar sua carreira, revelando uma supermodelo ao estilo da também gaúcha Gisele Bündchen. Mas, exemplarmente, foge aos desfiles, ao glamour, aos holofotes, desde a primeira sequência quando flagra estrelismo e violência explicita durante sessão de fotos no estúdio.

Porém, se este é o fio condutor da história, Furtado usa-o para sub-repticiamente chamar atenção para a estrutura social de onde saem as modelos. São pessoas com problemas comuns aos de qualquer família brasileira, embora a de Maria seja de alta classe média. E dá-se ao luxo de produzir alimentos naturais e viver no conforto, numa região bucólica. Não se trata, assim, de trabalhadores/as ou de baixa classe média, com os impasses daí advindos. Os de Anita e Maria são os de sua classe, sem outras veleidades.

A câmera de Furtado flagra-as dos mais diversos ângulos, mantendo-se às vezes à distância como se as vigiassem. E os ambientes por onde transitam são clean, limpos, traduzindo seu status. Mas os comportamentos de Pedro, Anita e Maria são o de quem preserva suas emoções de choques, ainda que reprimidas, latentes, ou prontas a explodirem. Até mesmo quando Pedro cai na comiseração, do tipo: “li muito livros, mas não escrevi nenhum. Tudo que tenho é ela (Maria)”. Mas o desfecho, antevisto pelo espectador, termina por tirar seu impacto, porquanto cai na autoimolação da mulher cuja vida pode mudar, mas que prefere manter o conhecido.

Real Beleza. Drama. Brasil. 2014. 84 minutos. Montagem: Giba Assis Brasil, Germano de Oliveira. Fotografia: Alex Sernambi. Música: Leo Henkin. Roteiro/direção: Jorge Furtado. Elenco: Vladimir Brichta, Adriana Esteves, Francisco Cuoco, Vitória Strada.

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