Anotações sobre marxismo e classes sociais (III): trabalho produtivo

Um complicador na análise das classes sociais diz respeito ao caráter produtivo ou improdutivo do trabalho.

Durante décadas o marxismo, influenciado pela herança da 2ª Internacional (cujas linhas gerais acabaram incorporadas ao cânone soviético a partir da década de 1930) encarou o operário de fábrica como sinônimo de proletário, distinto dos demais trabalhadores pelo fato de transformar diretamente as matérias primas para a criação de riqueza nova sendo, portanto, a encarnação do chamado trabalho produtivo.

Há um sentido nesta forma de ver: é somente na transformação da matéria prima pela força de trabalho que surgem riquezas novas. Isso sem levar em conta duas questões importantes: primeiro, as riquezas que surgem da própria natureza, para as quais Marx chamou a atenção em várias passagens de O Capital; depois, aquelas que podem ser consideradas intangíveis, constituídas pelos serviços de administração e bem estar coletivo que o aumento da riqueza material, tangível, proporciona.

A produção direta de riquezas novas, tangíveis, pela aplicação da força de trabalho é a forma elementar do trabalho produtivo. Sem ela não há riqueza nova em nenhum modo de produção.

Uma particularidade do modo de produção capitalista é que, nele, o caráter produtivo do trabalho se manifesta de maneira dupla.

A principal delas é o trabalho direto, fonte da geração da mais valia que valoriza e reproduz o capital.

Mas, e Marx chamou a atenção para isso, sob o modo de produção capitalista há outra manifestação do caráter produtivo do trabalho, que só será produtivo quando permitir a valorização do capital, independente da criação ou não de riqueza nova, mas por possibilitar a apropriação pelo capitalista, através do emprego da força de trabalho em uma função não diretamente produtiva, de uma fatia maior da riqueza produzida pelo trabalhador direto.

Riqueza que é extraída desse trabalhador na forma da mais valia, que circula e é dividida entre o conjunto das classes proprietárias.

Nas Teorias da Mais Valia Marx dá um conjunto de exemplos nesse sentido, entre eles o trabalho do professor ou da empregada doméstica.

Um trabalhador desta categoria pode prestar serviços diretamente àqueles que precisam dele, e sua remuneração pode ser entendida como uma troca simples de força de trabalho por dinheiro, Neste sentido eles exercem uma função útil mas sua atividade não valoriza o capital.

Entretanto, se houver um patrão intermediando o exercício desta mesma função útil, a coisa muda de figura. Ao contratar um professor ou uma empregada doméstica, uma escola (que é, assim, disse Marx, uma fábrica do ensino) ou uma empresa de limpeza compram a força de trabalho e a vendem a um preço maior, e assim valorizam o capital empregado. Aquele patrão capitalista combina com o trabalhador o pagamento de um salário X e vende o serviço contratado por X+1, sendo este adicional +1 a parcela da mais valia, criada socialmente no processo de produção direta, da qual aquele capitalista se apropria através da compra e venda da força de trabalho para o exercício de uma atividade útil mas não diretamente produtiva.

É justamente sob este duplo aspecto que a expressão “trabalho produtivo” faz sentido no modo de produção capitalista. É produtivo não por produzir riqueza nova, tangível, mas por permitir a valorização do capital através da apropriação de uma fatia da mais valia criada no processo de produção direta.

Aqui entra o papel das chamadas classes médias, cuja extensão e importância nas décadas seguintes foi entrevista por Marx particularmente nos registros que deixou em Teorias da Mais Valia.

Se, em alguns escritos polêmicos, Marx havia insistido numa visão dicotômica que opunha duas classes polares nas diferentes formações histórico-sociais (burguesia e proletariado, no modo de produção capitalista, por exemplo), nas análises mais desenvolvidas ele apresentou uma realidade mais complexa. E conclui que, com o desenvolvimento da produção capitalista e sua sofisticação técnica e científica, a tendência seria a redução do número dos trabalhadores diretamente ligados à transformação da matéria prima (e portanto ligados à produção direta sendo assim “produtivos”) e a ampliação do número daqueles ligados à administração, planejamento e pesquisa (Swingerwood: 1978).

E também, podemos acrescentar, o aumento do número daqueles cujos serviços são diretamente ligados ao aumento do bem estar coletivo, como médicos, professores, produtores culturais e artistas. Isto é, os profissionais ligados à esfera da superestrutura que podem ser designados por uma expressão usada pelo próprio Marx: os “servidores do público”, cuja atividade não é diretamente produtiva no sentido de criar riqueza material nova mas torna-se fundamental quando, com o desenvolvimento da produtividade geral e, em consequência, da riqueza da sociedade, é possível destacar cada vez mais pessoas para exercerem tarefas destinadas ou à própria administração (pública e privada) ou à prestação dos cuidados que tornam a vida mais cômoda.

São trabalhadores que, nas condições da produção capitalista, exercem suas atividades dentro do mesmo princípio explicativo formulado por Engels em sua nota de 1888 ao Manifesto do Partido Comunista: para poderem obter seus meios de vida são forçadas a vender sua força de trabalho a um capitalista (ou ao Estado, no caso da administração e dos serviços públicos), sendo então produtivos para o capital pois seus serviços são necessários para a produção, extração e distribuição da mais valia. Condição que, não se pode esquecer, na produção capitalista mais desenvolvida do século 20 loca estes trabalhadores em contradição direta e objetiva com o capital, da mesma maneira como ocorre com os trabalhadores produtivos do chão de fábrica.

No fragmento inconcluso de capítulo que encerra O Capital Marx identificou, além das três classes fundamentais (proletariado, burguesia e proprietários territoriais), a existência de uma classe média (Marx: 1978 e 1980).

Isto é, argumentou Swingerwood, Marx identificou a tendência do crescimento das sociedades anônimas e o avanço da divisão do trabalho para todos os setores da indústria e comércio. Crescimento que faz aumentar o número de gerentes, supervisores e outros trabalhadores ligados aos serviços necessários à administração dos negócios e à apropriação, distribuição e realização da mais valia (Swingerwood: 1978).

Em Teorias da Mais Valia Marx encarou o trabalho daquelas categorias como essencial para a produção da mais valia e sua extração e distribuição. Isto é, eram trabalhadores produtivos para o capital na medida em que sua atividade era necessária não só para a produção da mais valia mas também para sua extração e distribuição. Os trabalhadores técnicos e administrativos são necessários, assim, para melhorar a possibilidade de um patrão individual (ou uma empresa) apropriar-se de uma fatia maior da mais valia que, extraída dos trabalhadores diretamente produtivos, circula e é dividida entre as diferentes facções das classes proprietárias e governantes, e uma parte dela é usada para remunerar, em escala muito menor, os funcionários empregados naquela apropriação.

Referências

Marx, Karl. El capital – crítica da economia política. Livro I. México DF, Fondo de Cultura Economica, 1978.

Marx, Karl. Teorias sobre la plus-valia. Vol. III . México DF, Fondo de Cultura Economica, 1980.

Swingerwood, Alain. Marx e a teoria social moderna. Rio de Janeiro, Editora Civilização Brasileira, 1978.

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