“Jornada ao Oeste”, de cabeça para baixo

Cineasta malaio Tsai Ming-Liang contrasta enigmática lentidão ao tempo construído, para firmar ritmos e oposições entre o Oriente e o Ocidente.

De repente, seria bom olharmos a profusão de pedestres, automóveis, barracas, lojas, prédios e praças de cabeça para baixo. Seria como se descobríssemos o significado do existir fora da sociedade consumista. Tal insight, em princípio, ganharia sentido, dada à inversão de objetivos da soporífera civilização ocidental. Vive-se para se entupir de produtos inúteis, imagens fúteis, objetivos manipulados, vidas vazias. E, no final, atentássemos que nos perdemos numa correria sem objetivo ou sentido.

Neste seu “Jornada ao Oeste”, o cineasta malaio, Tsai Ming-Liang (1957), radicado em Taiwan desde a juventude, reforça esta impressão ao encadear longos entrechos em planos-sequência, opondo sutis visões da civilização ocidental e oriental. Elas se configuram no monge de donka, manto, vermelho-sangue, surgindo na orla marítima de Marselha, França, a se deslocar por ruas, praças, escadas, numa lentidão exasperante. E acaba entrando em flagrante contraste com o acelerado ritmo ocidental.

No entanto, não se trata de um filme sobre a diferença de ritmos, mas de concepções do existir. O monge sente cada gesto, movimento, enquanto se desloca como se prolongasse o tempo, e os ocidentais, premidos por horário, agenda, compromisso, não o fazem. Se alheiam de si, do outro e de seu meio. Passam sem o ver, quando muito o vislumbram. Salvo por duas situações nas escadarias do metrô: a moça que o fotografa várias vezes e a senhora e a criança que nele delatam cativadas por seu gesto.

Monge se torna figura esquecível

São nestes instantes que seu deslocar assemelha-se não a uma performance, mas do papel exercido por ele no espaço do deslocar cotidiano. Ele ocupa todo o lado da escadaria, obrigando os usuários ocidentais a desviarem-se dele, seguindo em frente. Ninguém o interroga, questiona. Liang constrói estes contrastes em plano-sequência de quinze minutos, um dos mais longos do cinema. E estabelece, assim, o desapegar-se do outro, ao tê-lo como figura que se mostra esquecível como tantas.

O que se vê são figuras mesmerizadas em seus jeans, camisetas, tênis, jaquetas, de iguais tons, com suas sacolas e bolsas refletindo seu desejo de consumo no planeta multinacionalizado. Mercadorias, eles próprios, com valores de troca e uso fixado pelo capital neoliberal em crise. No plano-sequência da praça, em que Liang mantém sua câmera aberta, fixa nos ocupantes das cadeiras do bar, isso se materializa. São raros transeuntes que destoam, a maioria se tornou tão somente massa.

O monge, longe de ser um personagem passivo, é duplo catalizador da atenção do espectador e do meio onde circula, ao levar uma eternidade para cobrir diferentes percursos. Os tons cinzentos das vestes dos pedestres contrastam com sua donka vermelho-sangue, possibilitando que se sobressaia. Este recurso permite a Liang, junto com seus assimétricos deslocamentos, encadear os entrechos e dar sentido aos contrastes. E, além disso, o diferencia sem uso de planos aproximados ou naturais closes.

Silêncio do monge mantém seu enigma

Momento algum, como nos 24 títulos de sua filmografia (O Rio, 1997), Liang dota seu filme de narrativa, enredo ou psicologiza seus personagens para contar uma história, eles emergem do encadear dos entrechos. Assim, inexiste explicação para o surgimento do monge no secular porto francês, ou seu objetivo ao perambular pela cidade, nem diálogo que decifre suas intenções, ele simplesmente transita por lá. E tampouco se deve transformá-lo num “Messias” ou líder catalizador de insatisfações.

O próprio Liang justifica suas escolhas estético-temáticas ao dizer: “Acredito que fazer um filme é buscar imagens verdadeiras. Não é se preocupar com diálogos, trama, nada disso. Não deixo que o público veja meus filmes como entretenimento: eles são feitos para a reflexão. Não quero que as pessoas consumam meus filmes. Acredito que fazer um filme é buscar imagens verdadeiras”(*).

Assim, a forma de o monge catalisar vem não da verbalização, do discurso, à qual o ocidental se acostumou, vem de seu silencioso ato. Isto produz efeitos potentes, de tranquilizar e estruturar novos sentidos, numa época de altos decibéis, de profusão de imagens sonorizadas e de poluição sonoro-visual. E Liang estabelece a interação do monge com o francês imobilizado (Denis Levant), cuja vida carece de sentido. Este termina por ver no monge não um guia, mas o ser no qual se espelha para existir.

Tsai e a fuga da massificação

O plano-sequência com o monge à frente, ele atrás, termina sendo de grande impacto, por chamar atenção dos transeuntes. E ganha significado ao sincronizar o deslocar de ambos por entre a massa padronizada. Este encontrar novo caminho fendendo a carcaça do unilateralismo neoliberal, opondo-lhe outra forma de construir o ser coletivo-social, vem, como diz Liang, da atitude de não se submeter à massificação. Enfim, já dizem os chineses: toda caminhada começa com o primeiro passo.



Drama. França
/Taiwan. (Xi You). Drama. França/Taiwan. 2014. 56 minutos. Edição: Lei Chen Ching. Fotografia: Antoine Heberle. Roteiro/direção: Tsai Ming-Liang. Elenco: Lee Kang-sheng, Denis Lavant.(*) Falante e bem-humorado, o diretor malaio Tsai Ming-Liang visita a UnB, site Correio Brasiliense, 04/12/2010.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor