“As Maravilhas”, ameaças submersas

Filme da cineasta italiana Alice Rohrwacher lança olhar sobre o cotidiano no campo e as ameaças vindas do turismo, da TV e da perda da inocência

Com andamento lento, a câmera passeando pelo campo e se detendo nas etapas da produção de mel numa gleba da Úmbria, este filme da italiana Alice Rohrwacher foge às narrativas tradicionais e a construção dramática do cinema atual. Inexiste propriamente uma história, mas entrechos que vão montando climas e desdramatizando os entrechoques entre os membros da família ítalo-alemã, seus vizinhos e estranhos que ali surgem. Mas é daí que emerge sua força, complexidade e olhar sobre o diferente.

A vida do casal Wolfgang/Angélica e de suas filhas, as adolescentes Gelsomina e Marinella e das pequenas Luna e Catarina gira em torno da produção de mel, comercializado na feira da pequena cidade. E segue o ritmo do campo, sem a ebulição do meio urbano e seus anseios consumistas. O contraste se estabelece não por dualidades entre o transcorrer da vida no meio rural e nas megalópoles, mas porque nele se percebe o mutar do tempo, o respirar do outro e se interage com o meio.

Este interagir às vezes é quebrado pela intromissão do inesperado, ou por incidentes que criam tensão, sem que Rohrwacher os dramatize. Como o despertar de Gelsomina (Maria Alexandra Lungu), de 16 anos, para a fantasia, motivada pela gravação de um programa da TV em sua região. Ela se fixa na bela apresentadora Milla Catena (Mônica Bellucci) e descortina outro universo: o da personagem materializada diante de si.

Rohrwacher apenas aponta os conflitos

Este encontro irá modificar sua relação com seu meio. Primeiro, ela desperta para o uso do sítio etrusco, usado pelo programa da TV para divulgar sua gincana, ao mesmo tempo que mostra seu valor como patrimônio histórico. Mas também por ela ver nele o meio de explicitar seu método de produção do mel. Isto, no entanto, cria tensão com o pai (Sam Louwick), que, remanescente das jornadas de 68, foge da intromissão da TV em sua vida rural, detestando qualquer tipo de exploração.

Para não deixar que esta tensão se transforme em conflito, Rohrwacher a desdramatiza. Vira apenas uma advertência, sem gancho para adiante. O mesmo corre quando aparece o real fator desestabilizador: a chegada do adolescente alemão Martin (Luis Huilca). Em fase de reeducação, ele é integrado à família ítalo-alemã, através de seu trabalho na apicultura. O que faz Geolsomina despertar para o desejo, a paixão, sensações para ela inusitadas.

O espectador percebe que Rohrwacher prefere insinuar a escancarar cada emoção ou descoberta dos personagens. Ele, sim, terá de fazer as ligações, apreender as sensações de Gelsomina e Martin. A estes fatos vem somar-se o da desestabilização da harmonia familiar, por meio do atrito entre Angélica (Alba Rohrwacher) e Wolfgang. O mais preocupante de todos, pois coloca em risco a convivência com as filhas e a manutenção da gleba e da produção de mel, ou seja, o que os sustenta.

Camelo dá toque surrealista à cena

Rohrwacher não o trata com dramaticidade, apontando os malefícios. Estes ficam, mais uma vez, por conta do espectador. A ele cabe antever o rompimento ou a reconciliação, e a música de Piero Crucitti não reforça caminho algum. Pelo contrário, estimula o fluir dos entrechos, enquanto a diretora/roteirista se detém nas contradições de Wolfgang, configuradas no camelo a girar a roldana diante das filhas. São surrealistas, significantes, refletindo as excentricidades do colérico alemão.

Estes fatos são os desestabilizadores internos do cotidiano da família. O externo vem do projeto de transformar a região em que moram num centro turístico, com hotéis e resorts e a exploração das potencialidades dos sítios etruscos. “Vivemos muito bem aqui, para quê aceitar isso?”, questiona Wolfgang ao vizinho. Esta é, na verdade, a ameaça de fato à sua vida e a de todos ao redor. O capital ao dar valor de uso ao sítio histórico, soterra a produção artesanal de muitos e dá lucro a poucos.

Mas como este não é um filme passivo, como a maioria da cinematografia de hoje, Rohrwacher usa o entrecho de Gelsomina/TV para apontar a saída. Esta se traduz no uso da tecnologia para produzir mel. A gleba não precisa ser medieval, pode unir o artesanal ao tecnológico para sustentar quem nela produz, mantendo o equilíbrio ecológico. Gelsomina o alcança, num desfecho próprio à parábola da união, reafirmando a metáfora do camelo. Ele pode ser desengonçado, mas atravessa o deserto.

Rohrwacher muda o contar da história

O encadear das sequências acabam ganhando sentido no desfecho, quando da festa, em que Gelsomina se fortalece no núcleo familiar. Ela é só encanto e inteligência. Deixou de ser a garota introvertida, amedrontada com a maneira como o pai a trata e o que acontece ao seu redor. Mescla, assim, passado e presente em seu filme, servindo o naturalismo para reconfigurar o modo de contar uma história, pois afinal se trata disso. E o faz sem manipular as emoções do espectador.


As Maravilhas. (Les Merveilles). Drama. Suíça/Alemanha/Itália. 2014. 111 minutos. Fotografia: Hélène Louvart, Música: Piero Crucitti. Montagem: Marco Spoletini. Roteiro/direção: Alice Rohrwacher. Elenco: Maria Alexandra Lungu, Sam Louwyck, Monica Bellucci, Alba Rohrwacher, Luís Huilca.

*Festival de Cannes 2014: Grande Prêmio do Júri

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