"A Lição”, norma de cão

Parábola sobre moral e ética burguesa e voracidade do capital são tratados neste filme de estreia da dupla búlgara Kristina Grozeva e Petar Valchanov.

A Lição. “Urok”. Drama. Bulgária/Grécia. 2014. 105 minutos. Montagem: Petar Valchanou. Fotografia: Krun Rodriguez. Direção/roteiro: Kristina Grozeva e Petar Valchanov. Elenco: Margita Gosheva, Ivan Barnev, Stefan Denolyubov.ação entre o pequeno furto de um/a aluna do fundamental e os juros escorchantes cobrados pelos bancos? A resposta da dupla de cineastas búlgaros Kristina Grozeva e Petar Vachanov, em sua estreia, está neste “A Lição”, coprodução búlgara-grega, de 2014. Em filme que mescla drama, suspense e economia, eles montam a parábola centrada na professora de inglês, Nadezhda (Margita Gosheva) para refletir sobre as duas instituições.

Partem de simples leitmotiv: o roubo de pequena quantia na escola recebe tratamento neorrealista (“Umberto D”, Vitório de Sica, 1952), transformando-o numa denúncia ao status quo. O faz mostrando o quanto a moral e ética burguesa põem as camadas subalternas numa camisa de força, impondo-lhe pesadas penalidades, deixando o sistema financeiro livre para impor regras que beiram a crueldade, sem penalidade alguma. Só aos EUA, os prejuízos do Crash de 2008 custaram 1 trilhão de dólares.

Ao centrar a ação em Nade, Grozeva e Vachanov a colocam como fiscalizadora, com autoridade para levar o culpado a repor o dinheiro à vítima e penalizá-lo. Neste espaço de educação e cidadania se reproduz também a moral e a ética burguesa. E seu rigor advém, em princípio, da autoridade impositiva, depois das atenuantes. Mesmo assim, ela não se delonga na conscientização do “culpado” em particular e da turma no coletivo. Mas lhe dá a chance de repor o que roubou.

Ou paga ou irá para a rua

A dupla Grozeva/Vachanov dedica poucas sequências a este lado da parábola, preferindo se estender no outro vértice através de uma série de incidentes vividos por ela. O faz invertendo a trama de Corra Lola Lola (Tom Tykwer, 1998), em que Lola (Franka Potente) tem 20 minutos para pegar o dinheiro e salvar o namorado Manni (Moritz Bleibtreu) das garras do gângster que o ameaça. Agora a imposição vem do banco, que exige de Nade a quitação das prestações atrasadas de sua casa em apenas 24 horas.

A exigência se transforma numa metáfora da crise grega, com a urgência de estar depositando bilhões de dólares nas contas do Banco Central Europeu, do FMI e da União Europeia. E. pega de surpresa, nem ela ou o companheiro Mladame (Ivan Barney) têm dinheiro para fazê-lo. De obstáculos em obstáculos, o espectador entra num frenesi digno de thriller. Como se vê nas negociações da dívida grega, os senhores do cofre são irredutíveis. Além de não chegar à alta direção, Nade se vê obrigada a lidar com “funcionárias impessoais”, presas às normas do banco.

Elas traduzem uma intransigência que desnuda a ampla liberdade do sistema financeiro para impor contratos com regras que fogem à apreensão do devedor comum. É exasperante vê-la correr de um lado a outro atrás de solução e não a encontrar nos limites oficiais. Acaba fazendo-o nas teias movediças do “mercado submerso”, da agiotagem, onde a liberação é rápida e a fiança a própria vida. Ao se enredar neste circuito, Nade e família são tragados pelo lodaçal, sem saída.

Dupla quer pôr Nade a refletir

Desta forma, Grozeva e Vachanov comparam o pequeno roubo na escola com as draconianas regras e altos juros do banco. Sem o perceber, ela é tratada com o mesmo veneno que destila na escola. Pode-se questionar a comparação, dizer que o erro do aluno deve ser avaliado e as imposições do banco rechaçadas, mas o que os diretores-roteiristas querem é levá-la a refletir sobre as normas da instituição onde leciona e a usura e a inflexibilidade do sistema financeiro.

Nade é o protótipo da mulher classe média: trinta anos, simples, sem adornos. Tão rigorosa com suas responsabilidades que desanda numa correria que a leva ao pai, com o qual está rompida. Em sequências que desandam em mútuas agressões, demonstram o quanto há de ódio repisado há entre eles. O que era para ser uma solução vira agressão familiar, sem retorno. Espécie de interregno que ajuda a compreender sua natureza e a de Mladame, e as razões de eles chegarem a tal impasse financeiro.

A validade destas sequências está em não tornar a personagem um autômato, que age para acelerar a narrativa. Sendo incapaz de refletir sobre seus atos e tirar deles consequências. No entanto, ela é multifacetada, complexa, capaz de fugir às chantagens e facilidades sexuais. Principalmente quando se veste com apuro, se transformando noutra mulher: sensual, elegante, pronta a resolver seu problema com as armas ao seu alcance, sem hesitação ou culpa.

Para culminar na brilhante sequência em que vai pelos cantos da praça, em elegante vestido azul marinho, camuflada, ficando à distância do banco. Por meio de elipse, os dois vértices se fecham, com ela na escola, diante da TV com outros professores, vendo imagens do assalto. Assim como a parábola equipara em três sequências o sistema financeiro oficial ao subterrâneo, a moral e a ética burguesa do banco às da conservadora escola, para Nade e o espectador entenderem que não se pune o desigual, em formação, sim a instituição desestabilizadora. Mais claro, impossível.

A Lição. “Urok”. Drama. Bulgária/Grécia. 2014. 105 minutos. Montagem: Petar Valchanou. Fotografia: Krun Rodriguez. Direção/roteiro: Kristina Grozeva e Petar Valchanov. Elenco: Margita Gosheva, Ivan Barnev, Stefan Denolyubov.

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